Os tesouros de Christian Lacroix num cofre aberto em Lisboa

O Mude explora numa exposição 16 modelos de alta-costura de um dos mais influentes costureiros franceses. Da Guerra do Golfo ao cinema de Visconti, está tudo entre saias e bordados.

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Coordenado da colecção Colchique, Primavera/Verão de 1991 Daniel Rocha
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A mostra está no Mude até 30 de Agosto Daniel Rocha
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A manufactura e a artesania são indissociáveis da alta-costura Daniel Rocha
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O primeiro modelo, à esquerda, é da "segunda colecção, que obtém o [prémio] 'Dedal de ouro'" - é uma "homenagem a Van Gogh" e da sua passagem por Arles, diz Lacroix Daniel Rocha
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"O fichu de Arles foi um tema recorrente nesse Inverno" de 1989/90, escreve Lacroix Daniel Rocha
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Le chant de l'Alguazil é a colecção de Outono de 1990: "Em Paris, este tipo de casaco era especialmente à noite, para um cocktail ou uma ida à ópera", recorda o criador nos textos enviados ao Mude Daniel Rocha
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Detalhe de Le chant de l'Alguazil: "esta colecção tem as suas raízes em Espanha, nas aplicações e na cachemira hispano-mourisca bordadas a azeviche sobre cetim encorpado fuchsia, utilizado nas meias e nas capas de toureiro" Daniel Rocha
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À entrada, o vestido n.º 50 inspirado no circo da colecção de 1994/95 para o Outono/Inverno Daniel Rocha
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Casaco de tecido de lã da colecção Outono/Inverno 1989/90 (n.º9) Daniel Rocha
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Courant d'air, para o Outono/Inverno 1991/2: "Como as mulheres que, durante a minha infância, vi na peregrinação a Saintes-Maries-de-la-Mer"; "recordo-me que Inès de la Fressange vestiu este modelo para assistir a uma gala na ópera" Daniel Rocha
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Três vestidos da colecção de Primavera/Verão de 2000 Daniel Rocha
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Detalhe da colecção de Primavera/Verão de 2000 Daniel Rocha
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Detalhe do coordenado n.º7 da colecção Colchique Daniel Rocha
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A noiva de 1995/96 é de Outono Inverno: "Vestido de casamento de uma bailarina imperial, traje de cerimónia inspirada no folclore popular" Daniel Rocha

Um cofre azul que contém todas as cores, com vestidos dramáticos atrás das grades e uma noiva de cauda longa à espera de pretendente – o espectador. Caleidoscópio – a alta-costura de Christian Lacroix celebra um dos mais influentes criadores de moda das últimas décadas com testemunhos exclusivos para Lisboa do criador sobre cada modelo e memória da sua meticulosa arte e fantasia.

Lacroix (n. 1961) ressuscitou a couture nos anos 1980 e perdeu a sua maison para a crise de 2008/9, mas nunca foi derrotado. “A alta-costura é a alta-costura, é uma loucura, contraditória, imprevisível e, sobretudo, é mais forte do que eu”, diz Lacroix.

Leopardos, artesanato, touros, Picasso, Van Gogh, Arles, gelados de chocolate e morango. Um arlequim provocador, caleidoscópico em todo o seu esplendor de técnicas ancestrais e rasgo contemporâneo, Lacroix tornou-se uma espécie de sinónimo no dicionário da moda para questionamento do gosto vigente. Ou, simplesmente, para a pergunta “Porque não?”.

“Tão rico em cores, motivos, inspirações e influências”, enumera Anabela Becho, comissária da exposição e coordenadora da equipa de conservação do Museu do Design e da Moda (Mude), que só podia fazer “uma leitura caleidoscópica do seu trabalho”. Influências como a de Christian Dior, cujo New Look de 1947 vira o bico ao pós-guerra e devolve à silhueta feminina a festa das saias volumosas que muito tecido usam, ou a de Cristóbal Balenciaga, arquitecto espanhol de alguma da melhor couture de Paris nos meados do século XX.

Ou as influências das artes que o alimentam, das viagens e ambientes que o encantam – os trajes da sua Arles natal, onde comia os gelados que acabam na base de um vestido iconoclasta com uma saia de cacau que espreita decorada com arabescos vermelho maduro, a Espanha das pinturas de Goya ou Velázquez, o cinema de Visconti, o trabalho de Jean Cocteau.

Na sala única do Mude que são os seus cofres, escolhendo expor sem vitrines que nos separem do canto de sereia da alta-costura, do detalhe do veludo ou dos bordados, estão até 30 de Agosto 16 modelos que “espelham muito bem a identidade criativa de Christian Lacroix, todas as inspirações” – é “um estudioso da história da moda mas com um novo uso das peças, com uma nova identidade”, contextualiza Becho. Peças produzidas e apresentadas entre 1988 e 2000, numeradas conforme a tradição da couture pela sua ordem de apresentação em desfile e apresentadas como “uma grande instalação”, categoriza a directora do museu, Bárbara Coutinho, durante a visita de imprensa à mostra.

Não falamos aqui apenas de moldes e bons cortes ou inovações de design. Aqui a conversa é sobre alta-costura, categoria em que só se incluem os criadores reconhecidos pela Fédération française de la couture: aqueles que criam em atelier, com pelo menos 20 pessoas a trabalhar num número mínimo de 50 modelos originais a cada temporada, directamente à medida dos clientes e que laboram dezenas de horas numa peça, num botão, numa jóia. Lacroix chega à alta-costura num momento em que a força do pronto-a-vestir quase apagara as casas de couture e faz da opulência dos anos 1980 uma arma. Enquanto desaguavam em Paris os grandes criadores conceptuais japoneses (Kawakubo, Miyake, Yamamoto) e a escola belga igualmente intelectualizada (Demeulemeester, Van Noten, Bikkembergs) pintada a preto e branco, Lacroix fazia a festa da cor.

Usa as tournures, como explica Anabela Becho, os poufs, os fichus, mas citando estas semi-gaiolas de metal na parte posterior das saias, os tecidos cosidos ao nível das ancas e os lenços/capa que cobrem dos ombros ao peito feminino, respectivamente, como formas novas de criar volume, de envolver a silhueta, de forma moderna. Lacroix “cria para um corpo, mas cria com toda a liberdade – era um criador na verdadeira acepção da palavra e não tanto um designer”, diz a comissária.

O Mude inaugura com este Caleidoscópio uma nova rubrica que visa continuar a explorar e a estudar o seu acervo e os Tesouros da Colecção de Alta-Costura da colecção Francisco Capelo. Houvera já uma viagem exploratória, de menor dimensão, ao mundo de Elsa Schiaparelli em 2013, mas agora é a sério – haverá mais em 2016, sempre sobre “os grandes criadores muito bem representados na colecção”, como explica Bárbara Coutinho. Sendo Lacroix um dos mais proeminentes no acervo, há ainda muitas e boas peças de Madame Grès, John Galliano…

Depois do primeiro vestido volumoso a pedir baile e inspirado, segundo escreveu Lacroix ao Mude, “nos antigos trajes de circo, nos tutus dos acrobatas, dos feirantes dos anos 1990” (colecção 1994/5 de Outono/Inverno), entremos então nessa instalação feita de histórias e tecidos. Atrás das grades da caixa-forte, um casaco vermelho de tecido de lã “vermelhão”, descreve o seu autor nas folhas de sala, que usa um fichu de veludo prolongado para um capuz negro. O efeito é, no mínimo, operático. E percebemos: “Tinha acabado de desenhar os figurinos para uma produção de Carmen [ópera de Bizet] antes de iniciar esta colecção”. Uma história. “Mas o detalhe principal eram, sem dúvida, os bolsos em cetim duchesse pespontado, bordados com passamanarias a azeviche negro por François Lesage, meu ‘padrinho’ na costura”. Outra história.

Há peças de colecções premiadas, como Pétanque, para a Primavera/Verão de 1988, ou aquelas que dialogam com o mundo lá fora do atelier – “Vivia-se um ambiente estranho durante essa estação” de 1991, “com a Guerra do Golfo, que levou à diminuição da actividade na alta-costura parisiense”, recorda Lacroix. “Mas eu decidira manter-me optimista e desenhar um Verão pleno de cores, corações ao alto!” Dessa colecção Colchique, um conjunto de casaco e um vestido curto em duas camadas cujos blocos de cor e geometrias antecipam uma mudança no estilo do criador formado para ser curador na Escola do Louvre. Na colecção de Primavera/Verão de 2000, e a última aqui representada, começa a desenhar em computador, usa o plástico, uma ruptura pré-milénio.

Hoje, a sua marca continua, mas numa versão pronto-a-vestir e com base em licenciamentos e parcerias sob a direcção criativa de Sacha Walckhoff. Lacroix continuar a desenhar, focado nos figurinos e na curadoria de exposições.

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