Christian Lacroix A crise do luxo

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PIERRE VERDY/AFP
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Como se perde uma casa de alta-costura? A maison Christian Lacroix declarou insolvência em Maio e o seu futuro é incerto, com o governo de Sarkozy bem atento. A crise também chega ao luxo

a Se a presença nas passadeiras vermelhas fosse dinheiro, se o amor da tribo da moda por uma maison de autor se traduzisse em alta financeira, se o estatuto de ícone cultural desse lucros, Christian Lacroix não estaria com a carreira em suspenso. Se, se, se. E se nem o luxo resiste à crise?Os 125 trabalhadores da casa Lacroix entraram ontem de férias e não sabem se (lá está ele outra vez) terão emprego quando voltarem em Setembro. A empresa do designer de moda francês abriu falência no final de Maio e em Julho apresentou-se em Paris num desfile a cheirar a despedida. As manequins desfilaram a custo zero, a colecção foi feita com tecidos quase em sobra e a empresa foi de férias em estado de animação suspensa - há vários interessados na sua compra e o governo está pronto a apoiar um dos planos. Na rua, diz Lacroix, as pessoas incitam-no: "Ânimo!", contou ao El País.
Suzy Menkes, editora de moda do jornal International Herald Tribune, descreve o trabalho de Lacroix como "a encarnação da frivolidade e da joie de vivre na alta moda". Para Eduarda Abbondanza, professora e directora da Associação ModaLisboa, ele é "turbulento na selecção de cores, extravagante nas volumetrias", amante das texturas. Paulo Morais Alexandre, especialista em história da moda, é enfático: "Como grande costureiro, é o mais interessante nos últimos 20, 30 anos. Lacroix é realmente o homem do maravilhoso da indumentária. Tem um lado muito festivo, muito espanhol, é essa a sua ligação a Cristóbal Balenciaga, que queria fazer obras de arte que andassem. É a grande festa e, aí, é barroco."
Como é que uma marca que produz vestidos com muitos zeros na etiqueta do preço abre falência? E como é que um país que considera a moda muito mais do que uma questão de trapos reage à possível perda de uma das suas marcas mais conhecidas?
Em Maio, quando se constatava a insolvência da Lacroix, Nicolas Topiol, o director da marca, explicava: a proprietária Falic (que detém uma cadeia de free-shops) foi afectada pela recessão mundial, que também causou uma quebra nas vendas no mercado do luxo. O que "prejudicou consideravelmente os nossos lucros", admitia Topiol.
Nos 22 anos desde a fundação da sua casa de alta-costura, Christian Lacroix conseguiu quase tudo: ser amado pelos editores de moda, ser um ícone cultural francês e internacional - era a marca preferida de uma das protagonistas da série britânica Absolutely Fabulous, vestiu o pessoal de bordo da Air France e fez o look do TGV em França. Foi reconhecido pelo Estado francês com a Ordem de Cavaleiro da Legião de Honra pelos serviços prestados à moda. E as estrelas de Hollywood vestem-no. Na única cidade que tem uma Federação da Alta-Costura, ele era um dos reis.
Mas nunca conseguiu lucros. Em 22 anos de explosão criativa, de peças-chave como a saia le pouf, faltou-lhe eficácia financeira. Este ano, as receitas da venda da colecção de pronto-a-vestir de 2010 caíram 35 por cento. Em 2008, teve dez milhões de euros de perdas (vendeu 30 milhões). E agora, no ano em que tudo o que é mercado foi afectado, o céu parece ter caído definitivamente em cima da cabeça do criador gaulês. Os grandes armazéns que vendem as marcas mais luxuosas deixaram de comprar produtos Lacroix e, segundo escreveu o Times em Maio, os americanos Neiman Marcus e Saks também cortaram nas encomendas.
O mercado do luxo também está, portanto, em recessão. O megagrupo Louis Vuitton Moet Henessy (LVMH, antigo proprietário e fundador da casa Lacroix) cancelou a abertura de uma megaloja Vuitton em Tóquio, a Chanel dispensou 200 trabalhadores e até a Versace chora a queda de 13,4 por cento nos seus lucros no primeiro trimestre deste ano. A Dior escolheu fazer o seu desfile deste Verão na sua sede, em vez de ir para os espaços luxuosos do costume, e a casa Valentino - que tem dívidas astronómicas e cujo criador já se retirou - está ainda a tentar manter-se à tona com a sua proprietária, Premira, a ameaçar cortar o investimento prometido.
Agora, o caso Lacroix preocupa o Eliseu. Dia 24 de Julho, o ministro da Cultura, Frédéric Mitterrand, reuniu-se com o costureiro e chegou mesmo a dizer que a perda da Lacroix seria "uma catástrofe cultural". Quatro dias depois, o designer esteve com o ministro da Indústria, Christian Estrosi, e saiu animado. "Sinto-me extremamente apoiado. Sinto-me confiante...", disse à AFP.
O ministro da Indústria revelou estar pronto a apoiar um plano em particular para a reestruturação e salvação da marca porque Lacroix "representa um património importante da cultura, do saber-fazer e da alta-costura francesa", disse, citado pela agência espanhola EFE.
O interesse do governo de Sarkozy pela maison, por uma marca de moda que não representa os lucros que uma Louis Vuitton obtém, por exemplo, é sintomático do estatuto da moda e, em especial, da couture em França. "Neste momento França perdeu, a todos os níveis, o seu papel cultural no mundo", analisa Paulo Morais Alexandre, professor da Escola Superior de Teatro e Cinema. "Agora, os criativos vão para Berlim ou para Nova Iorque e a única coisa que se salvou foi a moda parisiense", diz. "A Semana da Moda de Paris continua a ser a grande semana da moda", onde os criadores de todo o mundo querem mostrar o seu trabalho. É Meca.
Foi lá, exemplifica, que Fátima Lopes ou Ana Salazar abriram loja fora de Portugal. E foi para lá, acrescenta Eduarda Abbondanza, que os criadores asiáticos migraram nos anos 1980. "É óbvio que o governo francês tem de apoiar a casa Lacroix, porque essa é a sua indústria cultural mais importante", frisa Morais Alexandre. Abbondanza acha que o apoio e o interesse que o governo de Paris demonstra pela situação de Lacroix é o reconhecimento de que "a alta-costura é um bem em extinção e que, se houver necessidade, terá de o proteger". A couture é francesa, "a moda, para França, é uma instituição".
Aliança italiana
O futuro pode agora estar nas mãos dos italianos do grupo Borletti, proprietário dos grandes armazéns Rinascente (Itália) e Printemps (França). "O Grupo Borletti quer ajudar um criador e proteger o know-how da alta-costura", disse a porta-voz da empresa, Diane d'Oleon, citada pelo Wall Street Journal.
Há outras quatro ofertas de aquisição da Lacroix, consideradas "inconsistentes" pelo administrador de insolvência, Regis Valliot. Christian Lacroix, triste pelo facto de nenhum grupo francês de luxo ter mostrado interesse na sua marca (a revista Economist já avisava em Julho que dificilmente a LVMH ou a concorrente PPR se meteriam no imbróglio Lacroix), prefere a oferta Borletti.
Tudo depende do Tribunal Comercial de Paris, que deve agora avaliar a proposta Borletti. Esta manteria Lacroix à frente das operações e conta com o apoio do governo francês. O ministro Estrosi explicou que "o Governo quer dar conta da sua solidariedade com o plano que Lacroix apresentou (...), esperando que seja o melhor", referindo-se à aliança com os italianos.
Há ainda a possibilidade de a Falic reestruturar a empresa, cortando 90 por cento dos postos de trabalho e transformando a Lacroix numa amálgama de licenciamentos do seu nome. No pior dos cenários, 112 dos 125 funcionários serão despedidos; no melhor, o grupo Borletti garantiria "quase metade" desses postos de trabalho, disse Regis Valliot à AFP.
Tudo poderá ser resolvido no final de Agosto, inícios de Setembro, e Lacroix está a evitar a hipótese de se transformar apenas num nome, como quererá a Falic.
A marca foi fundada em parceria com Bernard Arnault, da LVMH, em 1987, e logo explodiu em relevância. A revista Time, em 1987, chamava-lhe "a nova super-estrela da moda". Karl Lagerfeld, da Chanel, dizia que Lacroix era "uma lufada de ar fresco"; Giorgio Armani dava-lhe as boas-vindas às "fresh follies".
O costureiro trabalhara na Hermès e na Jean Patou, e vivia os anos 80 "vaidosos, presunçosos, vulgares, inconscientes, multicolores, adolescentes, cínicos, utópicos, suicidas" em grande, como descreveu o diário francês Libération. A Lacroix queria o mesmo modelo da Louis Vuitton: ter uma grande marca de luxo, com linhas de alta-costura e de pronto-a-vestir topo de gama, mas suportando as finanças sobretudo com produtos igualmente caros, mas mais acessíveis em termos de mercado global - a marroquinaria (malas, acessórios) e os perfumes e cosmética. Um erro. O perfume C'est La Vie (1988) não teve grande sucesso e os 28 milhões de euros de publicidade nunca foram recuperados.
Numa altura em que se fala da mudança de paradigma negocial, quando todas as bolhas especulativas parecem ter feito "pop", Lacroix é então uma vítima da crise ou já um exemplo acabado (em todos os sentidos) da forma como se fazia negócio a.C. (antes da crise)? "Talvez seja o melhor exemplo de todos, sobretudo por ter corrido mal", explica Paulo Morais Alexandre. Até a sua alta-costura, diz, já não o era. "No momento em que deixa de ser alta-costura surge a percepção de que o mundo mudou." Eduarda Abbondanza, que voltou a olhar para a carreira de Lacroix recentemente para o catálogo do Museu do Design e da Moda (Mude), lembra que "até há alguns anos o encaixe económico das casas de alta-costura vinha desses produtos" associados. Só podia ser assim, nota, visto que "no passado recente" esse mercado era constituído por apenas "duas mil clientes, no total". Mas, com a globalização crescente, "houve uma deslocação dos consumidores" e os desfiles de Paris, por exemplo, são "a Europa a fazer marca". "Mas já não é ela que consome" - são também, e sobretudo, os mercados emergentes na Ásia.
Colecções intemporais
Arnault cedo percebeu que Lacroix não queria comércio. Queria apenas a arte. Citado pela revista on line Slate, dizia que Lacroix "não desenha roupas para as mulheres que vão trabalhar. Nunca conseguiu desenhar uma carteira para o dia-a-dia. É especialista do único, do vestido de casamento. Falhou em inventar um marketing à sua medida. O erro foi pensar que podia vender num círculo mais alargado". Em 2005, o gigante do luxo LVMH vendeu a Lacroix ao grupo Falic.
A ideia, aí, era reforçar a alta-costura, esse trabalho de artesãos feito de detalhe e criatividade. Eduarda Abbondanza recorda o desfile de Lacroix a que assistiu no final da década de 1980 e o vestido da colecção Francisco Capelo que escrutinou para o Mude. "Num só vestido pode usar seis, sete, oito técnicas."
Agora, os gastos e custos na Lacroix estavam "descontrolados", diz a consultora Meric et Associés, chamada a analisar as contas da marca. Para o futuro, o consultor Guillaume Martin recomenda uma linha de pronto-a-vestir de alta gama em vez da linha de pronto-a-vestir de luxo que a marca produz. E essas colecções devem ser mais intemporais, menos sazonais, e os canais de distribuição mais limitados a alguns mercados. "A alta-costura perde dinheiro", constata Martin, mas também "é o orçamento publicitário da marca." Mas "a não ser que se tenha produtos com grande sucesso comercial por trás dela, nunca se absorverá o custo e se criará lucro sobre o investimento criativo".
O criador, com a entrada em cena do grupo Borletti, já anunciou que quer abandonar o pronto-a-vestir para se concentrar "na alta gama, imaginando produtos que possam situar-se entre a alta-costura e o pronto-a-vestir de luxo", disse à EFE. Ao entrar no site de Lacroix, ouve-se a versão orquestral de Come As You Are, dos Nirvana. O futuro do criador nascido em Arles, miscigenado entre Espanha e a Camarga francesa e que se estabeleceu há mais de duas décadas no n.º 73 da rua Faubourg Saint-Honoré, segue dentro de momentos.

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