Charles Gayle, um músico sempre à procura de ser mais livre

Depois de anos a viver e a tocar na rua, Charles Gayle foi por fim reconhecido como uma figura fundamental do jazz contemporâneo. Domingo e segunda-feira apresenta-se a solo em Lisboa e no Porto.

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Com Gayle a questão é sempre a de uma fuga permanente DR

Durante largos anos, demasiados, ninguém soube muito bem onde parava Charles Gayle. Depois de ter dado nas vistas originalmente no grupo do baterista Rashied Ali (baterista do período final de John Coltrane), algures nos anos 1970, passou 15 a 20 anos a tocar nas ruas e a viver como sem-abrigo ou em edifícios abandonados. Quase sem saber como, resvalou de um apartamento minúsculo em Nova Iorque, a cidade para onde se mudara na década de 1960, para a absoluta incerteza. “Penso que se pode dizer que financeiramente as coisas se tornaram difíceis”, confessa ao PÚBLICO, “mas poderia ter procurado outras saídas. Houve simplesmente um dia em que peguei num par de coisas e fui viver para a rua, não pensei demasiado sobre o assunto.”

Essa ausência de ponderação sobre tal gesto apresenta-se, de certa forma, como a noção extrema de uma liberdade que Gayle reclama para o seu percurso. Aos 76 anos, olha para esses anos como tendo apenas mudado o seu local de ensaios. Tocava por prazer e, portanto, até as parcas moedas que acumulava ao tocar nos passeios de Nova Iorque não eram, na verdade, um objectivo essencial. “Praticava quando estava na rua”, descreve. “Mas não posso dizer que alguma vez tenha tocado canções bonitas para as pessoas que passavam, para lhes agradar ou arranjar dinheiro. Tocava integrado no ambiente em que vivia. Estava em ambientes de carros, trânsito, muitas vezes no meio de outras pessoas que viviam nas ruas, gente doente. Era um mundo subterrâneo. Mas não pensava nisso – tinha um saxofone ou uma trompete e limitava-me a tocar.”

O Charles Gayle que encontraremos este domingo no auditório da Escola de Música do Conservatório Nacional, em Lisboa, ou segunda-feira na Culturgest Porto, em concertos programados pela promotora Filho Único, será o músico de um discurso incrivelmente fluido, quer no saxofone quer no piano, cuja reputação crescente se construiu com base no tardio reconhecimento iniciado pela mítica sala de concertos nova-iorquina Knitting Factory e pela editora sueca Silkheart no final da década de 1980. Não por acaso, um dos três álbuns históricos que então marcavam a sua estreia, aos 49 anos, chamava-se Homeless.

Ainda que Gayle pareça sempre alheado da percepção exterior da sua música – “não ligo muito ao que dizem”, afirma na sua melódica voz de gravilha, em tudo semelhante ao tom falado de Tom Waits –, admite a clara “diferença de reconhecimento público” registado a partir desse momento em que o seu notável talento de uma linguagem free e avant-garde (na linha de um herdeiro de Albert Ayler ou Archie Shepp) tornou claro que o seu nome num cartaz passara a arrastar um público cada vez mais numeroso.

Charles Gayle ri-se de qualquer menção ao free jazz. Não porque não se reconheça como parte dessa família, mas antes porque a designação não existia no seu bairro quando a música que fazia e ouvia à sua volta tomava caminhos mais libertários. “Chamávamos-lhe 'black revolutionary music'”, diz, “porque estava associada aos direitos civis. De certa maneira, era uma música que gritava por uma maior integração e menor segregação. Para mim, era uma forma de expressar algo, semelhante a participar em marchas. Depois é que o free foi popularizado pelo Ornette Coleman e outras pessoas.”

Música que acontece

O registo de Gayle, apesar de algumas diferenças no saxofone e no piano, segue uma mesma lógica de navegação endiabrada e frenética por entre um mar de ideias que se atropelam, das melodias vertiginosas que colheu dos ensinamentos de Charlie Parker a todo um balanço ouvido aos músicos de piano stride e a Art Tatum em particular. Ao eleger duas influências fundamentais, diz Gayle, são precisamente Parker e Tatum a tomar os lugares cimeiros do seu panteão pessoal, apesar de nomear igualmente Dexton Gordon, Coleman Hawkins, Clifford Brown, John Coltrane ou as bandas de Count Basie e Duke Ellington como faróis de referência. Mas todos eles habitam a música de Charles Gayle como fantasmas. “Já não oiço música, há muito que parei com isso”, confessa. “Não estou interessado em ouvir ninguém. Ao fim de algum tempo, tudo passa a soar redundante. Não quer dizer que estes músicos que admiro não fossem excelentes. Mas é tudo música que já aconteceu. Prefiro ler um livro.”

Mesmo a sua música não lhe interessa a partir do momento em que está gravada. Gayle, que lançou pela editora portuguesa Clean Feed o álbum Shout!, em 2005, rapidamente se desinteressa de tudo o que não seja a música gerada no momento. Na sua procura por uma nova relação com a forma de intervir musicalmente, acabaria por criar uma figura a que chamou Streets the Clown (e que encontramos na capa do álbum Streets), quando um dia se olhou ao espelho e decidiu que estava farto desse tipo chamado Charles Gayle. “Acho que todos gostamos de palhaços e quando coloquei um nariz para tocar senti-me diferente”, refere, lembrando que nessa altura começou a tocar no meio do público, procurando que a música se cruzasse com pequenos sketches. “Foi uma forma de me libertar ainda mais, assim como à música e não ficar restrito à abordagem musical”, diz.

Com Charles Gayle, a questão é sempre essa: a de uma fuga permanente.

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