Carlos Magno

Uma reflexão, em forma de romance histórico, acerca da violência dos vencedores sobre os vencidos e os mecanismos de construção da memória colectiva

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Nos seus romances históricos, Eyvind Johnson reflecte sobre a posição do indivíduo perante a contínua violência do mundo


Em 1974, o Prémio Nobel de Literatura foi atribuído conjuntamente a dois autores suecos, Eyvind Johnson (1900-1976) e Harry Martinson (1904-1978). Eram ambos autodidactas e de origens humildes, tendo trabalhado desde muito jovens como operários — experiências que trouxeram para alguns dos seus romances de fundo autobiográfico, em que retratam as duras condições de trabalho nas regiões desoladas do Norte da Suécia entre as décadas de 1920 e 1960; a trilogia Romanen om Olof(1934-1937), de Johnson, é um bom exemplo disso. Na altura, a decisão da Academia Sueca foi controversa, pois entre os favoritos estavam nomes como Graham Greene, Saul Bellow, Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov. O Comité Nobel justificou a atribuição do prémio a Eyvind Johnson com as seguintes palavras: “Por uma arte narrativa de largos horizontes, que atravessa países e épocas ao serviço da liberdade”. Na verdade, logo após a Segunda Guerra Mundial — e depois de na década de 1940 ter publicado uma trilogia onde deixava claras a sua oposição aos totalitarismos e a amargura perante o nazismo —, Johnson escreve alguns romances históricos em que aborda de maneira reflectida e profunda a posição do indivíduo perante a contínua violência da História.

O Tempo de Sua Graça, publicado em 1960, é um desses livros. A acção decorre entre os séculos VIII e IX, sobretudo no Norte de Itália, no reinado de Carlos Magno, depois de os francos terem derrotado — em 774 — os longobardos (uma tribo de conquistadores escandinavos chegada à região havia cerca de dois séculos). Eyvind Johnson usa uma história de amor entre dois jovens — Johannes Lupigis e a sua prima, Angila, filha do duque Rodgaud — para, entre muitas outras coisas, reflectir acerca da intemporal violência dos vencedores sobre os vencidos, ou acerca dos mecanismos de construção da memória colectiva; a este assunto, por exemplo, dedica um capítulo, dissertando sobre a crueldade do povo longobardo, e fá-lo pela voz de um diácono, Anselmus, que num sermão de Sexta-feira Santa o relembra das alegadas atrocidades por ele cometidas; abordando os factos por aquele prisma, consegue deixar desconfortáveis e atónitos muitos dos que o ouviam na sua prédica sobre o “sofrimento de outros”. “Diz-se que o nosso povo, a tribo dos longobardos, atormentou pessoas no passado. É difícil de acreditar nisso, mas as verdades podem ser difíceis de apreender e, por vezes, dificilmente acreditamos nelas. Hoje em dia, não conseguimos acreditar nisso, não com genuína convicção. Tendo nós comportamentos tão bondosos.”

A narrativa centra-se essencialmente na família Lupigis, e é pela errância dos seus elementos, sobretudo das suas desventuras, que o leitor é levado para a vida no império carolíngio. De uma maneira ou de outra, o destino de todas as personagens do romance ficou ligado a uma revolta no ano de 775. Depois de os francos terem conquistado o território daquela tribo, constava que Carlos Magno castigara de maneira terrível os derrotados, sobretudo o rei. Humilhado, e por entre “sussurros cautelosos e murmúrios temerosos”, o duque Rodgaud conspira e prepara uma rebelião para se livrar dos francos; mas é executado um ano depois. O destino de todos os familiares acaba por ser afectado pelo acontecimento. Um seu sobrinho, Johannes Lupigis — que, a uma leitura mais superficial, parece ser a figura central do romance, e também um dos narradores —, irá, anos mais tarde, depois de várias desventuras, tornar-se secretário e biógrafo de Carlos Magno. O talento de Eyvind Johnson está em conseguir que o verdadeiro centro do romance seja o imperador Carlos Magno — apesar de aparecer como personagem quase secundária. São sobretudo os silêncios e as ambiguidades deste homem iluminado, amante das artes e ao mesmo tempo déspota sanguinário, que levam às reflexões mais profundas, muitas vezes não claramente enunciadas.

Ao longo das mais de cinco centenas de páginas de O Tempo de Sua Graça, Eyvind Johnson fascina o leitor com a sua habilidade para contar histórias e recriar ambientes. Por vezes, a narrativa parece arrastar-se de maneira propositada para deleite de leitura, como acontece aliás com muitas personagens que ao longo do livro se deitam fascinar pelo poder das histórias contadas junto às lareiras dos castelos. O jovem Johannes Lupigis é um dos que, fascinados, observam os que também como ele as ouvem: “O inquieto brilho do fogo alcançava todas as caras, e ele pensava que as expunha e, contudo, as envolvia em segredos, sem deixar de iluminar o seu próprio coração.”

Não sendo uma obra-prima, O Tempo de Sua Graça revela ao leitor um escritor de enorme talento e que estava até agora inédito em português.

 

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