Bela e inquieta ex-Rachel’s

Rachel Grimes: composições mais elaboradas sem perder de vista o minimalismo e os seus atalhos para a obsessão.

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Rachel Grimes: composições mais elaboradas sem perder de vista o minimalismo e os seus atalhos para a obsessão DR

Imagine-se, por mera possibilidade absurda, que os Sonic Youth eram um festival. Agora imagine-se que esse festival não era o All Tomorrow’s Parties. Imagine-se, por isso, um absurdo mais discreto e talvez por isso menos absurdo. E é isso: seriam provavelmente o Big Ears, em Knoxville. De irrepreensível reputação desde que arrancou em 2009, o festival atrai sempre para a sua programação músicos originários do mostruário pop/rock com inclinação exploratória e algumas sumidades emprestadas pela música escrita contemporânea, como Philip Glass, Terry Riley ou Steve Reich. Os dois mundos coexistem, aproximam-se, sublinham semelhanças e escarnecem dos fossos que tentam mantê-los permanentemente desligados. Na edição de 2004, comissariada por Reich, o próprio compositor atiraria a sua lança para terras mais populares ao compor e apresentar duas peças criadas a partir de canções dos Radiohead.

Não por acaso, do cartaz desse ano constariam Jonny Greenwood e Bryce Dessner (dos National), os dois mais evidentes e estimulantes instrumentistas vindos das canções a aventurar-se na composição dita erudita. Mas o Big Ears desse ano acolhia ainda John Cale, Julia Holter ou Rachel Grimes, igualmente num limbo mais ou menos evidente entre as duas margens. Nas fileiras dos Rachel’s, Grimes começou por erguer com Jason Noble uma música de câmara que foi prontamente baptizada como pós-rock, um pardieiro a que quase inevitavelmente era encostada qualquer proposta instrumental e minimalista que metesse uma guitarra ao barulho. Foram-se entretanto os Rachel’s, enxotou-se o pós-rock e Rachel Grimes ficou mais serenamente apeada numa música de limites menos claros. Por conveniência, é costume chamar-se-lhe contemporânea. Seja.

Antes ainda de os Rachel’s se finarem, Grimes apresentaria um primeiro esboço do que poderia ser a sua música fora do grupo, gravando em 2009 o álbum de piano solo Book of Leaves, reforço óbvio de uma relação afectiva com a música de Michael Nyman. Passados seis anos, The Clearing devolve agora a pianista a composições mais elaboradas (envolvendo a fundamental Amsterdam Sinfonietta), sem perder de vista o minimalismo e os seus múltiplos atalhos para a obsessão. Se pistas há que nos levam de forma inequívoca até Ryuichi Sakamoto (dar um salto até The Air of Place) ou Philip Glass, outras sugestões desembocam com subtileza e espanto em Ligeti (The Clearing) ou num jazz lúgubre e enigmático quando The Herald é tomada de assalto pelo saxofone de Jacob Duncan em voo livre por cima das teclas do piano.

Entre o sombrio e o melancólico, o belo e o tétrico, The Clearing soa a uma constante movimentação entre luz e sombra, deixando que harmonias radiosas consigam quase sempre intrometer-se em ambientes densos e carregados. Mas sem que a luz, na verdade, saia sublimada enquanto vencedora. As trocas sucedem-se, ainda que sem óbvia relação de forças e aquilo que fica é, afinal, uma estranha e bela inquietação. 

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