Avignon 2014: o ano de todos os falhanços?

Ninguém sabe o que se passa. Ou talvez ninguém queira, ainda, fazer balanços definitivos. Mas a verdade é que nada em Avignon mereceu, ainda, tanto festival.

Fotogaleria
The Humans, do franco-indiano Alexandre Singh Sanne Peper
Fotogaleria
The Humans, do franco-indiano Alexandre Singh Sanne Peper

Uma semana depois do início e parece que do 68.º Festival de Avignon nem notícia. Passadas as ameaças de que a Frente Nacional poderia vencer as eleições municipais, dobrada a espinha dos intermitentes e dos sindicatos que perceberam que a anulação seria prejudicial a todos, afastadas as nuvens de chuva grossa que ainda molharam os primeiros dias e nem o mistral, o vento que enlouquece, parece querer levantar uma edição sem chama, sem alma, sem risco, sem paixão.

Uma semana depois e ainda não surgiu um espectáculo que faça o pleno da crítica e dos espectadores. Num ano em que tudo é político e onde o quadrado vermelho de pano que expõe a solidariedade para com os trabalhadores do espectáculo se sobrepõe aos figurinos, até aos de épocas em que nem a ideia de greve, quanto mais a de democracia ou mesmo de cidadão, existia, em Avignon é como se nada fosse.

As promessas de novos olhares sobre o teatro como lugar onde a História pode ser reescrita caíram por terra com encenações como as de The Humans, do franco-indiano Alexandre Singh, artista visual que se estreia no teatro com uma delirante versão musical do nascimento do mundo. Mas é tudo tão cheio de nada que esta tentativa de cruzar Platão com o Chapeleiro Louco de Alice no País das Maravilhas peca por uma sobranceria que, mesmo que se disfarce de ingénua, sabe bem que não lhe bastam graças escatológicas e canções (brilhantemente interpretadas, diga-se) que são pastiches de revistas do final do século XIX britânico, assinadas por Gilbert & Sullivan.

Num brilhante resumo crítico a esta primeira encenação de Alexandre Singh (que o festival vendeu como querendo inscrever o artista visual na senda de outros sucessos recentes como Jules Gosselin – o incrivelmente talentoso encenador que no ano passado apresentou Les Particules Elementaires, a partir de Michel Houllebecq – ou Sylvain Creuzevault – que esteve em Lisboa para encerrar o Alkantara Festival com Le Capital, mas sobre o qual se fazem apostas em Avignon para saber quanto mais tempo vai ser possível viver fora da margem), o crítico do jornal Libération, Philipe Lançon, escreveu: “Aos que querem fazer e refazer o mundo sobraram sempre mais palavras do que talento”.

Singh não está sozinho. Esta edição tem sido pródiga em objectos ambiciosos e falhados. Houve Falstafe, texto de Valere Novarina a partir de Shakespeare, encenação de Lazare Herson-Macarel, jovem idealista que acredita num teatro popular à la façon de Vilar (o fundador de Avignon) e experimenta falar de hipocrisia e moral numa versão que deveria ser para crianças, mas é infantil).

Houve Un jour nous serons humains (texto de David Léon, coreografia de Hélène Soulié e Emmanuel Eggermont, que vimos em 2009 em L’aprés-midi, de Raimund Hoghe), mas não havia nada naquela relva e naquele texto hiperbólico ao qual nos agarrarmos. Houve, sobretudo, Hypérion, a partir do romance de Holderlin, adaptação e encenação de Marie-José Malis, que, como dizia o mesmo jornalista do Libération, tornava a elegia de Holderlin sobre a possibilidade de um novo mundo a partir das ruínas deste, no qual habitamos num jogo antiteatral. “O mais grave é que a alegria que no texto surgia da melancolia desapareceu. Tudo foi dissolvido num banho ácido profético no qual é indiferente quem diz o quê, porque as frases são desprovidas de toda a intriga, psicologia e personagem”. Ao fim de duas horas e meia, ficaram 60 pessoas das 200 que se haviam interessado em ir ver como é possível encenar um dos mais extraordinários momentos do romantismo alemão. A ideia de uma nova democracia, da Grécia antiga refundada, apresenta-se, afinal, como um apocalipse amplamente recusado.

Perante isto, o teatro deambulatório que o encenador brasileiro António Araújo, director do Teatro da Vertigem, apresentou no Hotel des Monnaies, antiga sede do Conservatório de Música, a partir do texto de Bernardo Carvalho, Dizer aquilo que não Pensamos em Línguas que não Falamos é mais do que um exercício de compreensão do mundo.

A companhia, conhecida por ocupar espaços abandonados e com um capital simbólico estratégico para a dramaturgia de cada peça – passou por Lisboa em 2000, a convite dos Encontros Acarte onde apresentou, na Casa da Reclusão da Trafaria, Apocalypse 1.1 – aproveita a antiga sede do Conservatório de Música de Avignon (e, sobretudo, a casa que melhor ostenta a riqueza de Roma no papado de Paulo V) para fazer submergir os espectadores numa infernal viagem ao interior da crise económica.

Da primeira cena, na rua, com os corpos dos espectadores a encontrarem os corpos dos actores deitados no chão, atropelados por carros, derrotados por um inimigo que será sempre invisível, à impossibilidade de formular, com seriedade, a solução para a crise económica que vem sendo prometida desde o início, como se fosse a cura para um vírus pelo qual ninguém se quer responsabilizar, todo o texto ocupa o espaço como se fosse a única, e a última, oportunidade para todos, personagens e espectadores.

É uma surpresa ver como o que poderia ser uma alegoria se revela, afinal, de uma lucidez comovente, uma parábola ácida que, usando os mesmos actores para explorar a errância das personagens, confunde heróis e vilões. O modo como o texto, interpretado por actores belgas, franceses e brasileiros em diversas línguas, explora diferentes níveis de comprometimento com o poder e as soluções para a crise, dá bem conta do potencial dramatúrgico do quotidiano, sem precisar de recorrer a metáforas perigosamente ambíguas.

 
Crítico de teatro e dança

Sugerir correcção
Comentar