As palavras de Amália, o mundo de Amélia

Dificilmente se poderia encontrar quem pegasse nestes poemas de forma mais inteira, sensível e sublime

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Amélia Muge faz-nos acreditar que as belas e falsamente simples criações poéticas de Amália podem viver sem a sua voz

Devido a um talvez muito a pender para a certeza, o nascimento em terras moçambicanas de Amélia Muge e a sua chegada a Portugal já adulta são determinantes na acção que começou a desenvolver na música portuguesa desde que surgiu no álbum Braguesa, de Júlio Pereira, em 1983. Criada com as canções de José Afonso, Fausto e José Mário Branco como ligação subterrânea a uma terra que ia conhecendo à distância, desfrutava ainda de uma familiaridade musical com o canto das mamanas e com os marimbeiros de Zavala (Inhambane) da cultura local. Daí que Amélia Muge tenha desembarcado em Portugal com um muito saudável repelente contra qualquer tipo de purismos e a sua música seja permanentemente atravessada por uma imaginação pouco permeável ao constrangimento das regras e das obediências.

Cantar versos de Amália Rodrigues (como Amélia aqui o faz) num registo fadista (que Amélia sempre aqui evita) seria não apenas um convite formal para ser classificada de herética mas também uma proeza tendencialmente absurda, um duelo de desfecho fatal com um fantasma demasiado presente. Com a ajuda de José Mário Branco, José Martins e do grego Michales Loukovikas, Amélia parte à descoberta de um lugar musical convocado pelas palavras de Amália e não pela imagem de fadista imaculada, soberba, perfeita que dela conhecemos. Por isso, mesmo que a guitarra portuguesa de José Manuel Neto desponte em Tenho uma cabra cabritaEu vivo a vida perdida, trazendo alguns ecos fadistas, o imaginário da autora não é hipotecado em favor de uma miragem. Amélia não quer ser ou colocar-se na sombra de Amália. Quer “apenas” levantar os versos do papel com as suas ferramentas. Oiça-se, aliás, o único destes poemas lavrados pela fadista que a própria chegara a vocalizar — Sou filha das ervas não poderia soar mais ameliano.

E dificilmente se encontraria quem nestes poemas pegasse de forma mais inteira, sensível e sublime. Se o dramatismo da poesia de Amália resulta num aparentado de tango em Meu coração sem direito ou na belíssima balada Ai de mim que me perdi, também os versos mais populares (quase humorísticos) de 335 gafanhotos ou O mosquito mordeu-me no olho se entregam especialmente bem à destreza lúdica de Amélia — que se chega ao jazz contrafeito de Serge Gainsbourg. E há ainda esse maravilhamento, intencional ou não, que José Mário Branco dirige em Tenho dois corações. Se Loukovikas leva Amália e Amélia a passear para o Oriente, José Mário remete os arabescos que se dizia habitarem a voz de Amália para a origem de que ela sempre falou: a Beira Baixa. Como se Amália tivesse escrito para os Gaiteiros de Lisboa. Como se estas belas e falsamente simples criações poéticas tivessem lugar fora do fado e, quase criminosamente, pudessem até viver sem a sua voz.

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