As fadas fadaram os Irmãos Grimm

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Os irmãos Grimm acrescentaram à história do Capuchinho Vermelho um diligente lenhador que chega no fim para matar o lobo

No bicentenário da publicação dos Contos da Infância e do Lar, eis que surge a primeira tradução integral em português (200 histórias, três volumes) da compilação dos irmãos Grimm. O Polegarzinho, a Branca de Neve, o Capuchinho Vermelho, a Gata Borralheira e o Alfaiatinho Valente estão de volta, agora na versão original

E se os sete anões não tivessem dito à Branca de Neve que poderia ficar com eles na condição de tomar conta da casa, cozinhar e limpar, e em vez disso tivessem querido queimá-la viva pendurada de uma árvore, e o príncipe só aparecesse quando os malvados se aprestassem a deitar fogo às achas amontoadas? E se a avó de O Capuchinho Vermelho tivesse engendrado uma maneira de afogar num tanque o lobo mau antes que este tivesse oportunidade de a devorar? E se a Gata Borralheira desobedecesse ao Príncipe, abrindo uma porta que não deveria ser aberta, e morresse afogada num poço de sangue?

Com perguntas como estas (levantadas por diferentes versões das histórias) ter-se-ão debatido os irmãos Grimm, Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), durante as várias décadas em que recolheram, burilaram e fixaram as antigas narrativas que viviam apenas na memória popular e no folclore alemão (muitas delas comuns, embora com alterações, um pouco por toda a Europa Central e do Norte). Quis o acaso que estes dois irmãos, que tinham sido estudantes de Direito e mostrado interesse pelos campos da Filologia e da Linguística, tivessem recebido um pedido para pesquisar e transcrever as canções populares existentes no espólio da biblioteca de Kassel. Daí até ao projecto de inventariação e recolha das histórias da tradição oral, e à publicação de Contos da Infância e do Lar, cujo bicentenário se comemora este ano - um bicentenário que a Temas e Debates / Círculo de Leitores assinala com a primeira edição integral em português dos três volumes da obra, o primeiro dos quais acaba de sair -, foi um passo.

Grande parte das histórias incluídas no primeiro volume dos Contos da Infância e do Lar foi recolhida no círculo de amizades dos Grimm - os elementos de várias famílias, reunidos em casa dos dois irmãos (que viveram sempre juntos, apesar do casamento de Wilhelm), "contavam histórias que lhes haviam sido contadas por amas, criadas e preceptoras" -, ou seja, junto da burguesia e da aristocracia que, como era comum na época entre as classes educadas, estavam familiarizadas com a cultura francesa. Após a publicação, não faltaram vozes críticas, pois várias das histórias eram variações dos contos do período medieval que Charles Perrault havia modificado e publicado, havia pouco mais de um século, em Histoires, contes du temps passé. Por causa disso, os Grimm acabariam por retirar alguns contos da colectânea, na edição seguinte, e diversificaram as fontes. É curioso ver como, num prefácio a uma edição posterior, eles se referem aos dotes de contar histórias de uma camponesa que encontraram numa aldeia perto de Kassel, a senhora Viehmann: "Mantinha as velhas lendas bem vivas na memória e afirmava que aquele era um dom que nem toda a gente possuía e que muitos não conseguiam reter nada no contexto devido. Narrava com cuidado, segurança e rara vivacidade, retirando um prazer pessoal da narração, primeiro de forma muito livre, depois, se alguém queria, tornava a repetir devagarinho, para que, com alguma prática, se pudesse transcrever a história."

Um trabalho de remoção

Contos do Infância e do Lar haveria de ter ainda mais dois volumes. Mas foi a partir da edição de 1819, agora sobretudo com Wilhelm a trabalhar nelas, que as histórias começaram a ser reescritas numa linguagem mais directa e simples, com uma roupagem literária de contos infantis (originalmente, destinavam-se a adultos) e ganharam uma unidade: o "estilo Grimm". Foram removidas partes que pudessem "prejudicar o tom rústico", acrescentadas outras (por vezes trazidas de histórias diferentes), e incorporados motivos psicológicos, onomatopeias, repetições, expressões idiomáticas e provérbios; ao mesmo tempo, eram eliminados elementos de conotação sexual ou referências a incesto e abuso no seio familiar, bem como os aspectos mais violentos das narrativas; as histórias passaram a centrar-se em acontecimentos mágicos e maravilhosos. Sobre isto, dizem os Grimm num prefácio: "Não visamos, para tal, uma inocência que se obtém removendo ansiosamente tudo o que remete para certas situações do dia a dia que de modo algum podem permanecer escondidas, na ilusão de que o que se remove de um livro também se remove da vida real. Buscamos a inocência na verdade de uma narrativa franca que não esconde por omissão nada de impróprio. Ainda assim, eliminámos cuidadosamente desta edição qualquer expressão que não fosse adequada para crianças."

Entre as histórias que se tornaram mais longas está a do Capuchinho Vermelho, à qual foi acrescentado um simpático e diligente lenhador que chega no fim para matar o lobo e tirar-lhe a menina e a avó de dentro da barriga, ao mesmo tempo que a enche de pedras; na versão original, a história acabava com a morte de ambas. Em alguns dos contos foi ainda alterada a natureza das personagens - a "mãe cruel", por exemplo, foi substituída por uma "madrasta" -, e as bruxas passaram a ter um carácter mais teutónico, mais de acordo com os perigos de um ambiente de florestas de grandes carvalhos (como o perigoso bosque do Capuchinho Vermelho) habitadas por seres fantásticos.

O trabalho de anotação dos Grimm dá conta do rigor com que se lançaram à recolha: quando existem outras versões para além da que é contada, os autores referem-no, precisando as diferenças. Caso, por exemplo, da história da Branca de Neve: em algumas versões, Espelho é o nome de um cão a quem a rainha indaga da sua beleza; noutras, a menina Branca de Neve deveria ser queimada pelos sete anões, e é então que, quando já está pendurada de uma árvore, aparece um príncipe a resgatá-la.

A última edição publicada em vida dos Grimm foi a sétima, em 1857, que assim ficou como definitiva. A recente (e excelente) tradução para português de Teresa Aica Bairos teve por base essa edição.

Quando os irmãos Grimm iniciaram o seu projecto de recolha das histórias tradicionais, o movimento artístico que ficou conhecido como Romantismo Alemão surgira havia então poucos anos, fruto de um crescente desencanto com o mundo (que não se expressa por uma equação matemática), e da vontade expressa pela elite cultural de renovar o paradigma racionalista (pois o ser humano não é apenas razão, é também sentimentos contraditórios e desejos místicos) associado ao Iluminismo francês. Criado pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, pelo jovem poeta Novalis, e pelos filósofos Schelling e Schleiermacher - que em 1797 se reuniram em manifesto na revista Athenaeum -, o Romantismo Alemão configurou-se como uma espécie de "corrente mística" centrada nas raízes históricas e culturais do povo, num esforço de recuperar para as artes a fantasia, o fantástico, o mítico e o sobrenatural. O movimento depressa alastrou da filosofia para a poesia e a literatura - são exemplos disso os contos de E.T.A. Hoffmann, com o grotesco e o sobrenatural associados a um poderoso realismo psicológico, a poesia de Hölderlin, e Goethe, cujo Fausto é o cume do movimento -, mas também para a música (com Schubert, Liszt e Brahms, entre outros) e para a pintura (Caspar David Friedrich é o seu mais puro representante).

As políticas do Romantismo

É no contexto deste movimento cultural que a ideia de coligir contos populares tem um lugar singular. Quando os irmãos Grimm metem mãos à tarefa, o projecto tem dois objectivos claros: fazer um levantamento tão exaustivo quanto possível de elementos linguísticos para fundamentação dos estudos filológicos da língua alemã; e realizar uma fixação dos textos do folclore literário dos povos germânicos, como expressão autêntica das suas raízes culturais. Mas por trás deste retorno à fantasia e ao fantástico, à valorização da cultura popular e da poesia natural (Naturpoesie) - um retorno que corporiza os ideais românticos - há também um programa político: a necessidade de edificar uma espécie de "consciência nacional germânica", pois eram tempos política e socialmente conturbados para os vários povos teutónicos, que apesar de um substrato cultural comum teimavam em manter-se politicamente separados.

Entretanto, a par da recolha de histórias, os Grimm iam publicando e trabalhando noutros projectos: Jacob Grimm finalizou um estudo sobre a poesia dos mestres-cantores medievais, e Wilhelm um outro sobre as antigas baladas dinamarquesas; em conjunto trabalharam ainda sobre a Edda (conjunto de sagas islandesas e de histórias da mitologia nórdica) e sobre uma colectânea de romances espanhóis antigos, o Reinhart Fuchs.

Mas as fadas não fadaram os irmãos Grimm apenas para a escrita de histórias de seres alados que habitam os sonhos e as florestas negras. Eles foram também os iniciadores de um outro projecto extremamente ambicioso: um dicionário que referisse todas as palavras alemãs e com as correspondentes frases exemplificativas. À data da morte de Jacob Grimm (1863), tinham chegado à sexta letra do alfabeto. Foram precisas mais umas gerações de linguistas para acabar o trabalho, cujo último volume foi publicado em 1961. Actualmente, esse é ainda o dicionário mais completo da língua alemã.

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