Afinal quem foi Che Guevara?

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Vamos continuar a não saber quem foi Che, mesmo depois de "O Argentino" e "Guerrilha", filmes de Soderbergh. Os mitos não se deixam tocar.

E pronto, aí vem o "Che" e a coincidir com os 50 anos da Revolução Cubana, de que o guerrilheiro argentino, tornado cubano, tornado do mundo, tornado dos gadgets e das T-shirts, foi um dos autores. É um filme para ressuscitar um tema recorrente: afinal quem foi ele? Vamos continuar a não saber, talvez por ser da natureza dos mitos não se deixarem tocar.

O filme chega sem trunfos na manga e com humildade. Numa entrevista à rádio espanhola SER, quando o díptico - "Che: O Argentino" e "Guerrilha" - se espalhou por quase quatro centenas de salas do país, o homem que deu corpo e densidade ao herói, Benicio del Toro, disse que todos deram o máximo por um trabalho desprendido. "Ninguém conhecia muito o 'Che' ou a história de Cuba e durante a pesquisa aprendemos muito; não queríamos inventar nada. É impossível fazer um filme sobre 'Che'; mas nós tentámos."

A primeira parte cobre o período de 1955 a 1959 e começa com um mergulho nos tempos da clandestinidade na Cidade do México. É a casa de Maria Antónia, os encontros à sucapa da polícia, a procura de um barco para desembarcar em Cuba, o campo de tiro de Los Gamitos, as traições, a compra do Granma - sabe-se lá porque é que um tal Robert Eliksson, o seu proprietário, lhe chamou assim - que levaria 82 homens. Fidel (no filme, o mexicano Demián Bichir) já tem todos os trejeitos e a vertigem dos discursos que o acompanharão o resto da vida. O jovem médico argentino já diz "che" por tudo e por nada. São cenas com poucos pormenores, mas Soderbergh explicou também várias vezes que nunca quis fazer um documentário.

O resto é a viagem, o desembarque, o caminho para Alegría de Pío, a guerra nos pântanos e na florestas, debaixo do ronco dos "Biber", os aviões Beaver da ditadura, a abrir caminho para a Sierra Maestra, os primeiros mortos da coluna, a formação da guerrilha que fará Fulgencio Batista fugir e tomar Santa Clara, e Ernesto "Che" Guevara nas Nações Unidas, em 1964, a explicar a pureza da revolução cubana, todo o trajecto do Movimento 26 de Julho, desde o assalto a Moncada.

Agrada a sobriedade das paisagens, o ritmo pausado, ainda que constante, sem altos e baixos do argumento. Gosta-se da ausência de sensacionalismos, preenchida com a omnipresença de Benicio del Toro, que passará para a segunda parte tão forte como desde o primeiro momento em casa de Antonia. Adere-se, quase por osmose, por via do espantoso actor porto-riquenho, ao homem que já era lenda antes de se saber dele na Bolívia e que a morte, em La Higuera, só tornou uma história maior. Mas fica-se com a sensação de que só se falou no guerrilheiro, e mesmo assim só de alguns momentos.

A asma, as mulheres, os fuzilamentos...

Em nenhum momento do filme aparece, por exemplo, a explicação da asma - a pieira, o suplício do guerrilheiro, que enche a sala e nos obriga sem querermos a encher os pulmões. Nada se diz sobre as mulheres da vida dele. Como não se fala de um simulacro de fuzilamento que aplicou a três dos seus homens ou das condenações à morte em San Carlos de La Cabaña.

A dificuldade em respirar que assaltou impiedosamente "Che" durante toda a vida, contraiu-a quando tinha dois anos. A história é contada por Pierre Kalfon, um dos seus biógrafos. A 2 de Maio de 1939, de manhã, Celia, a mãe, foi nadar com "Ernestito" para o Clube Náutico de San Isidro, o bairro elegante de Buenos Aires onde a família morava. Pediu-lhe que ficasse quieto enquanto ela ia nadar. Ele cumpriu. A aragem das primeiras horas transformou-se numa Sudestada, um vento forte dos planaltos gelados da Patagónia. Quando o pai os foi buscar, o pequeno tiritava de frio. Nessa noite teve a primeira crise de asma. Quando o filme estreou em Espanha, o "El País" telefonou a Pacho O'Donnell, outro dos biógrafos de Guevara. Ainda não o tinha visto e perguntou: "Trata da sua infância?" Não. E ele: "É muito difícil conhecer 'Che' sem conhecer a sua infância."

Os amores do guerrilheiro também passam ao lado. É verdade que sobre isso não se sabe muito. Mas o pouco que se conhece deste homem que também tinha o seu lado comum mal aparece.
A parte que vem nas biografias: teve um primeiro casamento, com a peruana Hilda Gedea, a resistente aprista que conheceu na Guatemala, de quem teve Hilda Beatriz Guevara Gedea, que morreu em 1995, e um segundo, com Aleida March, militante do 26 de Julho, que conheceu em 1958, quando desenvolvia a ofensiva sobre Santa Clara, que o acompanha na luta na cidade, relação de que nasceram Aleida (1960), Camilo (1962), Célia (1963) e Ernesto (1965) - é Catalina Sandino Moreno que a interpreta no filme.
Mas terá tido outras paixões, uma com Lídia Rosa López, de quem teve Omar Pérez, nascido em 1964, que nunca reconheceu. E outra com Tâmara Bunker, a única mulher da guerrilha boliviana, morta quando atravessava, na coluna de Joaquín, de que fazia parte, o rio Masicuri. Por esses dias, Che mandou a sua última carta a Aleida, que começava assim: "Minha única:"

A velha questão dos fuzilamentos. O filme mostra dois, quando a coluna do Comandante está acampada em Los Cocos, nas margens do Madalena. Os executados são um rebelde por ter torturado e assassinado camponeses, e um mensageiro por ter violado uma adolescente. O episódio é cru, um hiato numa sequência de cenas sobre um homem rígido mas tolerante, até pela recusa do padre que um deles pede - estava longe, não chegaria a tempo. Os estampidos destas balas fazem um eco diferente. Mas na mesma altura e por motivos semelhantes são julgados outros três homens, submetidos a um simulacro de fuzilamento. São vendados. Esperam a morte. Mas à voz de "fuego" as balas passam-lhes por cima.
Ernesto Che Guevara: "Poderá parecer agora um sistema bárbaro, este, empregado pela primeira vez na Sierra, mas não havia nenhuma sanção possível para aqueles homens que lhes pudesse salvar a vida." (Revista Verde Olivo, 9 de Junho de 1963)

E relacionado com isto, os fuzilamentos de Havana. "O Argentino" não inclui a entrada dos barbudos na capital. Se o tivesse feito teria de referir o que se passou em La Cabaña, fortaleza espanhola do século XVIII transformada por esses dias numa prisão militar. É aqui, sob a autoridade do Comandante, que têm lugar quer os tribunais marciais quer os especiais. Claude Julien, enviado especial do "Le Monde", refere "duzentos" executados. Herbert Matthews, do "New York Times", o homem que entrevistou Fidel Castro nas montanhas, considera provável "seiscentos". Não se sabe.

Soderbergh disse em Cannes que o que quis foi "fazer sentir às pessoas o que era estar com aquele tipo". Benicio del Toro foi a Cuba falar com quem conheceu Che de perto. Peter Buchmann, autor do argumento, falou na decisão de "evitar" os "momentos de cinema" convencional. "Che: O Argentino" e "Guerrilha" não são uma abordagem convencional do guerrilheiro. Mas de repente, e passando ao lado de momentos importantes para o conhecimento dele enquanto um homem como os outros, e do "modus operandi" da guerrilha, ajudam à continuação do mito no mundo desenvolvido - onde o retrato que lhe tirou Korda faz as vezes das ideologias - por oposição ao que passa no Terceiro Mundo, onde ainda continua "vivo". Como em Havana, que fez fila para o ver o seu "guerrilheiro heróico".

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