A política virtuosa

Com a solicitude esclarecida do bom pastor que sabe por onde deve conduzir o rebanho, Francisco Assis, na sua crónica da passada semana, pôs-me à distância da sua “difícil moderação” e empurrou-me para o lado dos extremismos. Como democrata legítimo e nem inclinado para um lado nem para outro, para se manter num equilíbrio “nem-nem”, ele situa-se no lugar geométrico onde se vêem, viradas de costas uma para a outra, a esquerda e a direita extremas. Eu tinha cometido a indelicadeza de o classificar como representante de uma elite consensual que exibe as virtudes da moderação centrista, mas o centro a que me referia podia não coincidir com o centro ideológico. E por isso tive o cuidado de dizer que a categoria “nem-nem” atravessava todo o espectro ideológico. Serviu-me essa categoria para definir um modo acrítico de pensar, respeitoso da doxa e articulado em lugares-comuns, em ideias desvitalizadas. A este idioma de tagarelas e falsários da linguagem, praticado em igual medida pela classe político-mediática e pela simétrica classe mediático-política, chamei editorialismo. Acrescento agora que este editorialismo ideológico e generalizado intoxica o ambiente, corrompe a linguagem, asfixia o pensamento e arruína o espaço público. É este contexto que permite a Francisco Assis reclamar como um gesto de coragem e de grande ousadia a sua “difícil moderação”. Não nos devemos espantar: quantas vezes não ouvimos nos últimos tempos ministros e primeiros-ministros, decisores e gente poderosa, clamando que possuem a valentia da resistência? É esta atitude pastoral e intrépida, de protecção do rebanho contra humores rebeldes, que Francisco Assis diz ser uma política virtuosa contra os desvarios irresponsáveis de quem acha que nesse discurso o que resta da política já não é nada e destina-se a garantir que nada se passe. Celebremos a prova de resistência e de luta esforçada pela moderação salvífica, na batalha de Assis da penúltima quinta-feira, em nome de uma coisa que nos esmaga, de tal modo representa o todo da política virtuosa: a “civilização democrática e liberal”. Assim lhe chama Francisco Assis, funcionário político, obreiro intelectual e seu guarda avançado. Esta densa e eloquente elaboração do pensamento político, a que Karl Kraus chamaria “fraseologia”, é uma manifestação gritante do idioma mediático-político, irredutivelmente “nem-nem”. Nem isto nem aquilo, ele é pura tagarelice, uma palavra vazia, insignificante. “Democracia” é, neste caso, um significante-flutuante, uma palavra que quer dizer tudo — política, ética, direito, civilização — e portanto não quer dizer nada. Para dar um conteúdo à noção de democracia, necessário é perceber, entre outras coisas, que ela tanto se refere a uma racionalidade jurídico-política, respeitante ao próprio corpo político, como a uma forma e técnica de governo. Mas isso pouco interessa a Francisco Assis, que faz da “civilização democrática” uma mera injunção, um comando, uma palavra de ordem para nos pôr em sentido. Quem é que perante os fins últimos da democracia — a suprema “civilização democrática” — não se inclina em reverência e suspende todo o pensamento? Só exaltados extremistas não se comovem com o triunfo da “opinião” — da doxa — e das palavras de ordem. E, para além de não se comoverem, ainda lhe dão o nome feio de “editorialismo”, definindo-o como uma das formas pelas quais a “elite consensual” esvazia a linguagem e faz desse esvaziamento o plano no qual se constitui toda a política actual.

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