A filosofia como filologia

Dois nomes centrais do cânone filosófico e do cânone literário lidos por uma autora que sempre se moveu em zonas de confins

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Maria Filomena Molder tem o dom de ler os autores antigos com carácter de urgência e na sua irredutível actualidade Enric Vives-Rubio

Kant e Goethe são os autores em questão nos 13 textos reunidos neste volume, com um título que evoca o poeta alemão. “Textos” é uma maneira neutra de os nomear, já que na apresentação a autora lança uma funda suspeita sobre a possibilidade de dizermos que se tratam de “leituras de Kant e Goethe” (admitindo, porém, a justeza de uma outra declinação que, no frontispício do livro, é justaposta ao título: Kant e Goethe. Leituras), ou de “estudos”. Não vamos aqui entrar nas questões formais respeitantes a classificações de género, mas esta hesitação terminológica formulada na abertura é um eloquente indício de algo que é essencial em todo o trabalho filosófico de Maria Filomena Molder, a questão terminológica e a factum loquendi, a experiência da linguagem. Compreendemos melhor do que se trata se nos lembrarmos do que Benjamin disse a propósito da terminologia: que ela é o elemento próprio do pensamento, o seu momento propriamente “poético”. E isto segue a par de outra coisa: Maria Filomena Molder procede com maníaca atenção filológica à letra dos textos, de tal modo que filosofia e filologia aproximam-se, entram numa relação de funcionalidade. E, no limite, respeitando muito embora uma velha cisão, tanto a filosofia é praticada como disciplina crítico-filológica como a poesia — e a literatura em geral — é atraída para o pólo do conhecimento filosófico. Repare-se, aliás, que quase todos os textos têm como ponto de partida uma citação, um excerto transcrito, que é objecto de leitura e de comentário, tornando-se um ponto de irradiação do pensamento, que se desenvolve como protocolo de leitura. Assim, o texto filosófico surge como uma espécie de literatura. Podemos ver na justaposição de Kant e Goethe uma manifestação do que acabámos de dizer. Mas talvez até nem seja a mais decisiva, já que Goethe, com os seus tratados, as suas teorias, os seus estudos científicos — e também enquanto autor de uma obra imensa onde se configura uma época — fornece matéria de vários e numerosos âmbitos disciplinares. Além disso, foi um leitor de Kant, de cujas “doutrinas” tentou tirar o “maior proveito”.

Mas não é da leitura e recepção de um pelo outro que se ocupa este livro. Tentando fazer um mapa muito sucinto dos temas de que ele trata, devemos começar por dizer que, quanto a Goethe, predominam as questões do pensamento morfológico (e, portanto, são sobretudo os seus “estudos naturais” que estão em foco; mas comparecem também os dois dramas “puramente demoníacos”, Torquato Tasso e Fausto, e, longamente disseminada, a Viagem a Itália), o que permite a passagem para as afinidades entre poesia e ciência, entre arte e natureza, entre arte e conhecimento. Mas há também um capítulo dedicado à concepção goethiana da história; e passagens dedicadas a uma auto-consciência do moderno, tal como ela se manifesta em Goethe; e partes dedicadas ao diálogo com Schiller, passando por uma leitura, de grande alcance, do ensaio schilleriano sobre a oposição entre a “poesia ingénua” e a “poesia sentimental”. Quanto a Kant, trata-se quase exclusivamente da leitura da terceira Crítica, a Crítica da Faculdade de Julgar, atravessada por uma fundamental Unheimlichkeit, uma região inquietante para a qual Maria Filomena Molder aponta logo na apresentação do seu livro. Encontramo nele motivos suficientes para percebermos que a terceira Crítica é a mais actual das obras kantianas e que tal actualidade diz respeito directamente à tarefa da filosofia e ao “programa de uma filosofia vindoura”, como reza o título de um texto kantiano de Walter Benjamin, convocado no penúltimo capítulo deste livro. Os conceitos de arte e natureza (e o modelo kantiano de resolução do problema da relação entre ambos), assim como a “Analítica do Belo” e a “Analítica do Sublime” ocupam um espaço importante. Também aqui se colocam as questões da forma e do sem-forma, da imaginação e dos territórios de confim. O problema do limite em Kant, que Maria Filomena Molder analisa a partir de uma dupla acepção que, em alemão, é consagrada por duas palavras, Schranke e Grenze, encontra aqui o problema da terminologia de que falámos inicialmente: em latim, terminus significa precisamente “limite”. Mas há também outro aspecto notável, que marca profundamente todo o trabalho filosófico e ensaístico de Maria Filomena Molder: a capacidade de aproximar de nós os autores mais antigos (os gregos são um exemplo perfeito), de os ler com carácter de urgência e na sua irredutível actualidade. Trata-se de um saber que procede por constelações, esbate as distâncias e os fios cronológicos, procura condições e instrumentos de legibilidade inesperados e trans-históricos.

 

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