A encenação da palavra

A verve imparável faz de Amor & Amizade um filme onde as palavras (e os seus efeitos: os rumores, as intrigas) são o essencial.

Foto

O que faz a força dos melhores filmes de Whit Stillman – aquela trilogia inicial da década de 90: Metropolitan, Barcelona e The Last Days of Disco – é o patente desequilíbrio entre a opulência dos ambientes, normalmente encontrados entre a fina flor da sociedade da alta de Manhattan (mesmo quando transplantada para a Catalunha), e a secura, para não dize austeridade, com que eles são filmados. Nesses filmes abundam os planos fixos, os enquadramentos “frios” a cortar o espaço, as cenas reduzidas ao essencial tanto quanto os diálogos (por norma muito bem escritos, cheios de wit) parecem explodir em todas as direcções. Isto cria uma “distância”, efectivamente, uma perspectiva que ajuda a encontrar o ponto em que a relativa “futilidade” das personagens e dos jogos de salão se converte em malaise, mais ou menos profunda, mais ou menos trágica.

Cineasta tão novaiorquino, e tão dessa Nova Iorque mais “aristocrática” (e nem mesmo em Barcelona, repete-se, deixa de o ser), causa alguns minutos de estranheza vê-lo a atirar-se a Jane Austen e ao século XVIII inglês. Só uns minutos, porque rapidamente a estranheza se torna familiar, e porque esta nova incursão europeia de Stillman acaba por representar o encontro com uma das possíveis matrizes do seu cinema. Não é só pelo continuum entre os códigos e os ambientes da aristocracia britânica de há duzentos e tal anos e o retrato da alta sociedade novaiorquina do final do século XX; é, também, e fundamentalmente, pelas similitudes entre as atmosferas narrativas, conspirativas e sentimentais, manipuladoras e fúteis – aqui o diabólico plano, em constante mutação e premeditação à medida que as circunstâncias se alteram, de Lady Susan (uma Kate Beckinsale impecável), que pretende encontrar um marido rico para a filha e um novo marido para ela próprio, mesmo que isso signifique virar do avesso o statu quo matrimonial e familiar de um sem-número de outras personagens.

Mas, e ainda mais do que, isso, a força motriz de Austen é a mesma de Stillman: o verbo, a palavra. Não chega a ser “teatro filmado”, mas a sucessão de cenas de diálogo, numa verve imparável que é o sumo do filme inteiro (servido, no tom justo, por um elenco perfeitamente calibrado), faz de Amor & Amizade um filme onde as palavras (e os seus efeitos: os rumores, as intrigas) são o essencial. Podemos até esquecer-nos da labiríntica narrativa, porque essa encenação da palavra, para além de ser o maior prazer do filme, realça (e “comenta”) a constante representação das personagens, mas também a dos actores, como se uma coisa fosse um ponto de vista sobre a outra e houvesse sempre essa distância. Sublinhada pelo facto de Stillman, se foi filmar ao countryside inglês e aos palacetes da aristocracia, parecer filmar esses cenários como eles são agora, tipo “casas-museu” – como uma reconstituição “instantânea”, a carregar mais no artificialismo do que no realismo, sempre a lembrar que se trata de Austen vista do século XXI e, quiçá, da alta de Manhattan.

Divertido e inteligente, deve saudar-se ainda Amor & Amizade por ser a tardia chegada ao circuito comercial português de um cineasta que, fora uma recente retrospectiva no IndieLisboa, permanecera quase invisível em Portugal.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários