A anestesia cultural

Uma doxa de feição nihilista (embora não pareça), instalada de modo sufocante no coração da nossa época, diz que a cultura é um bem precioso e por isso é preciso expandi-la e defendê-la incondicionalmente. A esta injunção respondem os governos através da instituição de um ministério da cultura ou, pelo menos, de uma secretaria de Estado da cultura. E digo “pelo menos” porque, de facto, esta segunda modalidade é vista como uma vontade frouxa de erguer a bandeira simbólica da cultura, por oposição ao hastear viril que – assim julgamos - um ministério representa. Na opção governamental por um ou por outro estão em jogo diferenças de carácter simbólico, em primeiro lugar, e só depois de carácter efectivo. Mas o plano simbólico é aqui muito importante. Defender a cultura e criar condições para a sua criação e expansão são desígnios que ninguém de bom senso ousa atacar, mais não seja porque se sujeitaria a uma impiedosa censura pública. Mas a defesa universal e incondicional da cultura não pode subtrair-se a interrogações que introduzem suspeitas legítimas relativamente a este ecumenismo cultural. Aquilo a que chamamos cultura tornou-se um território ilimitado. Tudo, ou quase tudo, se tornou cultura, a não ser que fiquemos por uma definição mínima: a herança canonizada pelas instâncias tradicionais de legitimação, o património legado pelas artes, pelos saberes e por certas tradições. Aquilo que define a noção de cultura, no nosso tempo, é a sua plasticidade e o seu carácter elástico. A esfera cultural tornou-se pan-inclusiva e tem uma infinita capacidade agregadora e de homogeneização. A culturalização global da vida coloca num mesmo regime a promoção dos vinhos do Dão e a literatura contemporânea, os sabores da gastronomia regional e os saberes da poesia, a arte alentejana dos chocalhos e a arquitectura gótica. Neste mundo pan-cultural, governa a lei da indiferenciação. De tal modo que a questão já não é “como defender a cultura?”, mas antes “como defendermo-nos da cultura?” Esta pergunta jamais será feita pelas instâncias governamentais, mas nós temos obrigação de a fazer e de mantermos distância crítica, sem que isso signifique querer expulsar – deitando fora o bebé com a água do banho - a função efectiva e simbólica do Estado, quando este cria gabinetes ministeriais para se ocupar das coisas da cultura, mas acaba por se ver confrontado com um território sempre muito mais vasto do que aquele que está ao seu alcance delimitar. Defendermo-nos da cultura, da democracia cultural, é resistir a forças perniciosas. Em primeiro lugar, é resistir à pura e simples integração da arte e da literatura na cultura, não permitindo que elas se tornem dispositivos de pacificação e de redução das tensões. Adorno, na sua Teoria Estética, desenvolveu a noção de Entkunstung, um neologismo bizarro que pode ser traduzido, literalmente, por “desartificação”. Este conceito tem, em Adorno, uma dimensão polivalente. Um dos seus sentidos é a progressiva dominação da “indústria cultural”. Mas o problema não está apenas, nem principalmente, aí, onde a crítica da cultura de Adorno o identificou. Em primeiro lugar, a questão não é tanto a das formas degeneradas da “cultura de massa”, mas o princípio fundamental de indiferenciação e de homogeneização como operador essencial da normatividade cultural. Em segundo lugar, a expansão ilimitada da cultura é ao mesmo tempo causa e efeito da retracção da esfera política, é um extermínio doce da política e, portanto, um dispositivo central da despolitização. Em suma: é uma anestesia, exactamente o contrário do que deveria ser. 

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