Óscar Lopes, o comunista que continua a acreditar na revolução

Entrevista para a edição do PÚBLICO de 8 Agosto de 1999, série Testemunhas do Século Português

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Nasceu em 1917, o ano da revolução bolchevique e da aparição da Senhora de Fátima, no seio de uma família católica, monárquica e conservadora. Da infância, guardou, para sempre, o “espectáculo” medonho da pobreza, das gentes de Leça e Matosinhos. Aos 12 anos, leu A Ilustre Casa de Ramires e, desde então, Eça é a sua figura tutelar.

Chegou à política conspirando com Vitorino Magalhães Godinho e o grupo dos socialistas liderado por António Macedo. Apesar de os comunistas desconfiarem dele, foi pelo seu próprio pé que pediu, em 1944, para entrar no PCP. Crítico — “desde cedo o estalinismo começou-me a fazer doenças de pele, havia brutalidades imensas” —, mantém-se fiel aos ideais comunistas. Ensaísta incontornável (a “vermelhinha” “História da Literatura Portuguesa” que organizou com António José Saraiva continua a ser um marco fundamental), continua a acreditar na revolução comunista ao mesmo tempo que persiste em tentar perceber o que é linguagem: “O que é falar? Ainda hoje me preocupa. Se quiser, é a minha religião.”

A sua infância foi muito marcante na sua vida futura?
Sim, mas de uma forma complexa, porque sou o avesso daquilo que fui. A minha infância era católica, monárquica e conservadora. Fui menino do coro, ajudei à missa, andava nas procissões, levei com todas essas coisas —  era o meu ambiente. Mas foi precisamente contra isso que reagi. Desde muito cedo, aí pelos nove anos, comecei a ter aquilo a que se pode chamar “consciência ideológica”. Escrevi uma coisa aos 11 anos, que a minha mãe guardou, em que explicava porque é que não podia acreditar em Deus. Diziam-me: Deus é a causa de tudo. Perguntei logo: e a causa de Deus, onde é que está?

Houve algum acontecimento que o levou tão cedo a ter esse tipo de interrogações?
São coisas do meu foro íntimo... Houve uma revolta que desde muito cedo me levou a ser sensível à pobreza. Vi famílias sem casa, crianças que morriam como tordos, uma coisa medonha. Para irem a enterrar, punham-se as crianças com uma tacinha para as pessoas darem esmola. Os pedintes chegavam a fazer cancros, nos braços, no corpo, esfregando alho e outras coisas, não sei bem... Era o meu “espectáculo” de todos os dias. E, nessa altura, já tinha um enorme remorso de ser burguês por tomar conhecimento directo com a miséria e não poder fazer nada.

O ambiente familiar foi muito marcante, os seus pais, a sua avó...
... os três juntos e senti-o dramaticamente. Achava um disparate, por exemplo, os meus pais não se poderem divorciar porque não podiam. A minha avó marcou-me imenso. Com 80 anos, compunha música e já não ouvia nada. Era uma coisa extraordinária. Eu comecei a ficar surdo por volta dos 12 anos, por causa de um sarampo mal curado. Mas aprendi música e cheguei a estudar piano. Só não continuei porque, quando fui para Lisboa, tirar Letras, não tive dinheiro para prosseguir. Acabei por ir para Filologia Românica — estudar latim, grego e sânscrito para tentar saber como é que os homens tinham começado a falar —, mas estive hesitante em ir para música, porque sempre compreendi a música como uma fala. Cheguei a dividir as orações a cantarolar, era um dos meus passatempos... Desde muito cedo, um dos meus grandes problemas — e mistério — era o de saber o que significa a linguagem? O que é falar? Ainda hoje me preocupa. Se quiser, é a minha religião. A linguagem é um dom da espécie humana.

Teve um modelo literário-ideológico?
A minha figura tutelar foi Eça de Queirós. O primeiro livro que li, com uns 12, 13 anos, foi “A Ilustre Casa de Ramires”. Quando estava angustiado, bastava ler Eça para me tonificar. Eça tem um tal humor e uma tal capacidade de compreender aqueles que sofrem.

Não havia mais nenhuma realidade que o tocasse a não ser o do Portugal miserável?
Não, eu era profundamente patriota! E sou ainda, de certo modo... Mas esse Portugal pobre era o que mais me impressionava.

E o Portugal colonial? Uma pequena nação ter construído um império tão desmesurado não o intrigava?
A ideia de império não me dizia nada. Uma coisa que me causou muita impressão foi a Exposição Colonial no Porto, em 1934. Os negros que trouxeram morreram como tordos porque não aguentaram o Dezembro do Porto. Cedo me despeguei das colónias, embora admirasse a História da Expansão.

Dois anos depois, dá-se a Guerra Civil de Espanha. Onde é que estava nessa altura?
No 5.º ano do liceu. Aqui éramos reprimidos pelo Salazar e eu sentia já essa repressão... Salazar é uma personagem complexa. Pessoalmente, tenho uma certa simpatia por ele [risos], por certos aspectos da personalidade dele — aquele mutismo, aquela vida quase de monge. A figura de Salazar compreendo-a em certos aspectos. Mas não podia entender os ataques às convicções dos outros, de censura — que surgem desde muito cedo. E ainda não era comunista, tinha apenas simpatias.

Perante o caos em que estava o país, a ascensão de Salazar não era inevitável?
É possível... era, aliás, a posição da “Seara Nova”. O António Sérgio, o Jaime Cortesão, todos eles sentiam a necessidade de uma ditadura para consertar as coisas.

Antes de ser comunista, qual foi o seu percurso?
A partir de 1937-38, dei-me com os socialistas. O Vitorino Magalhães Godinho, com quem conspirei. Em 1940-41, militava muito no grupo do António de Macedo e dos irmãos Cal Brandão. Os comunistas tinham medo de se aproximar de mim, talvez porque sabiam que a minha família era conservadora. Os contactos com os comunistas eram difíceis, eram comunistas de café, de discussão. Era uma cartilha, bê-á-bá Santa Justa, não me dei com eles. É em Vila Real, em 1944, que me torno comunista. Fui eu próprio que pedi a um colega meu de liceu. Fui ter com ele e disse-lhe: “Eu sei que tu és comunista e eu também gostava de ser.”  

Quais foram as suas responsabilidades? Foi controleiro?
Quase logo a seguir a entrar para o partido. A maior do tempo controlava intelectuais aqui do Porto e do Norte em geral. Para mim, era um dever. Mas não era uma coisa fácil: muitas vezes não sabia se estava a ser denunciado se não. E, se calhar, fui, porque mais tarde um pide em Lisboa despejou-me todos os meus pseudónimos. Eu para a PIDE era sobretudo um nome de referência para localizar a organização, porque estava muito exposto.

Quando soube que, em nome da ideologia comunista, se cometeram tantas barbaridades não se sentiu chocado?
A minha simpatia, como ainda hoje, era pelo movimento, pelas pessoas que não têm nada. Agora o que se passou indubitavelmente que me aflige. Mas as coisas por que eu lutava eram, de facto, democráticas. Entre um comunista soviético e um comunista português há uma diferença enorme.

Como é que viu a invasão da Hungria, da Checoslováquia, as ditaduras de Ceausescu...
A Hungria é um caso à parte, era um golpe fascista que estava em curso. Quanto à Primavera de Praga, eu estava em Londres e escrevi um texto em que dei vivas ao Dubcek. Desde cedo o estalinismo começou-me a fazer doenças de pele, havia brutalidades imensas. Na história do Partido Comunista soviético há imensas coisas que me feriram. Tanto assim que cantei hinos ao Gorbatchov.

Quando é que conheceu Álvaro Cunhal?
Depois do 25 de Abril. Tenho uma grande estima por Cunhal. Foi o homem que esteve sempre na mó de baixo. Estou convencido de que nunca cairia nas brutalidade de um Estaline. É um homem cultíssimo, tem uma cultura estética e literária fortíssima. A dirigir o Comité Central [do PCP] era o mais democrático de todos. Por exemplo, quando a Zita Seabra estava já a sair do partido, e havia camaradas que queriam interrompê-la, ele não deixava. Tenho boa impressão dele; acredito que tenha tido as suas oscilações, mas, dentro dos homens do 25 de Abril, é um dos que é mais sinceramente democrata.

Manteve alguma polémica com Cunhal quando saudou o aparecimento de “Sibila”, de Agustina-Bessa Luís?
Não, isso é uma lenda. Houve uns fulanos que tinham fama de comunistas e que disseram que eu tinha traído. Não liguei. E, a esse nível, a opinião do Cunhal é uma opinião como outra qualquer. A gente não pode fazer juízos literários pela boca do Cunhal.

Leu “Até Amanhã, Camaradas”? Sabia que Manuel Tiago era Cunhal?
Li. Cunhal não queria, e ainda não quer, que se faça misturas entre o artista e o teórico. Acho que, neste aspecto, ele exagera.

Quando é que conheceu Mário Soares?
Na Faculdade em Lisboa, muito fugazmente. Mário Soares é popular, agrada facilmente. São aspectos, porém, muito enganadores que nunca me prenderam muito...

Foi preso pela PIDE, em 1953. Foi muito traumatizante?
Em 1953. A razão invocada foi por andar a assinar papéis contra a bomba atómica. Apoiei a conferência do Teixeira de Pascoaes, mas eles já andavam desconfiados. Depois puseram um pide a vigiar-me que alugou um quarto em frente do meu, aqui no Porto. Na prisão estive cerca de seis meses sempre isolado, só tinha a visita da família. Não gosto de falar muito sobre isso e muito menos gosto de fazer papel de herói, até porque nunca me bateram, nunca sofri maus tratos. Os incómodos maiores, se calhar bem piores do que me baterem,  era quando me acordavam a meio da noite. Eu tinha um sono difícil e eles perceberam isso e acordavam-me para ver se eu me descaía. Era terrível.

Como é que viu, enquanto comunista, a Primavera marcelista? Acreditou que algo iria mudar?
Tinha alguma simpatia por Marcello Caetano, mas era um homem sem estofo, não resistiu. E nunca acreditei naquilo. O marcelismo era uma agonia do regime, embora também não soubesse como é que ia terminar, como veio, com o 25 de Abril  — que eu não acreditava que levasse à revolução.

Como é que soube do 25 de Abril?
Soube do 25 de Abril pelo telefone e depois liguei a televisão. Foi uma grande alegria, sou capaz de ter deitado uma lágrima, mas, ao mesmo tempo, fiquei muito perplexo. Perguntava a mim próprio: como é que isto foi possível? 

O que é que significou para si o 25 de Abril?
Houve a restauração das liberdades públicas, eu passei a poder assinar os meus textos com o meu nome nos jornais. Mas se tinha quase a certeza que não ia haver revolução socialista — que ainda não era desta —, por outro lado houve coisas que me surpreenderam. Por exemplo, nunca acreditei que certos princípios consignados na Constituição vivessem três, quatro anos. Aquilo que aconteceu no Alentejo era, para mim, impensável. A nacionalização da banca foi outra coisa inimaginável. E hoje Portugal é um país muito diferente.

Ainda acredita numa revolução comunista?
Acredito. Bem, em primeiro lugar uma revolução comunista não é necessariamente uma coisa violenta. E já não acredito numa revolução portuguesa, mas sim numa alteração ao nível da Europa ou da Península Ibérica. A qualquer momento pode dar-se, porque não acredito no capitalismo. Talvez só nos EUA e em condições muito especiais...

O processo da descolonização é um tema polémico mas ao mesmo tempo tabu. Não o choca assistir aos espectáculo da guerra em Angola? Nós não temos culpas no cartório?
Não, quem tem responsabilidades foram aqueles que contribuíram para a guerra colonial. A começar pelos EUA...

... A ex-URSS não é para aqui chamada?
Acabou por reconhecer o MPLA. O drama passou-se lá com a entrega de armas a outros. Nós não interviemos muito. A palavra de ordem “Nem mais um soldado para as colónias" não foi do Partido Comunista. Nós achávamos que era preciso estabelecer um processo. Isso foi atropelado pelo MRPP... A influência do Partido Comunista nas tropas era indirecta. De qualquer modo, as negociações da descolonização são muito baralhadas e não as percebo muito bem. Agora, o que constato é que as pessoas dizem que Angola não é um país, mas dois. Mas não é a nós que nos compete dizer isso, não é desejável.

Depois de ter estado contra a entrada de Portugal na União Europeia, o PCP acabou, mais por força das circunstâncias do que das suas convicções, de apanhar o comboio. Como é que vê o futuro da Europa?
A vida está ser decidida por um grupo muito pequeno de pessoas. O Parlamento Europeu tem muita pouca expressão. Todo o problema europeu está na maneira como se constrói. Continuo a não ver aquilo que os portugueses querem representado no Parlamento Europeu. E, pelo contrário, vejo que muitas vezes se tomam decisões pela via da intriga. Há decisões que se tomam em que os europeus não têm nenhum peso. A entrada na guerra da Jugoslávia, como escreveu no PÚBLICO Mário Soares, é um bom exemplo.

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