Luciana Mello: "Na minha cabeça já tenho uns 500 discos prontos!"

Filha de Jair Rodrigues, Luciana Mello canta dia 16 no Espaço Brasil, em Lisboa, cidade onde ela, o pai e o irmão actuaram juntos quase em segredo há dez anos

Foto
Luciana Mello, Jair Rodrigues e Jairzinho Oliveira em Lisboa, em 2003 Pedro Cunha /ARQUIVO

Luciana Mello canta dia 16 no Espaço Brasil da LxFactory, em Lisboa. Nesta entrevista inédita, ela, o irmão e o pai, o célebre Jair Rodrigues, falam de si e da música, numa noite em que estiveram juntos em Lisboa. Foi em 2003.

Na Semana Cantoras brasileiras do Espaço Brasil, na LxFactory, em Lisboa, quatro vozes passarão pelo palco em dias consecutivos: Luísa Possi, filha da cantora Zizi Possi, apresenta hoje, 14 de Fevereiro, Seguir Cantando, um espectáculo estreado no Citibank Hall, em São Paulo, e gravado em DVD; dia 15 é a vez de Jussara Silveira, com uma mescla dos discos Flor Bailarina (este com reinterpretações de canções angolanas) e Ame ou se Mande, ambos gravados com o percussionista e baterista Marcelo Costa e com o pianista Sacha Amback, que a acompanham nesta apresentação em Lisboa; no dia 16 cantará Luciana Mello, filha do célebre cantor Jair Rodrigues e irmã do também cantor e compositor Jairzinho Oliveira; e dia 17, por fim, Bia Goes apresenta A Flor e o Espinho, uma homenagem ao exímio instrumentista Nelson Cavaquinho (1911-1986).

Ora precisamente há dez anos, 23 de Julho de 2003, Luciana Mello actuou em Lisboa em quase segredo, na companhia do pai e do irmão, o que raramente acontecera nas suas vidas. Vinham do Festival de Montreaux, onde também se apresentaram juntos. Jair Rodrigues, o pai, acabava de lançar no mercado internacional o disco Jair Rodrigues, Intérprete, Luciana gravara já três discos (o mais recente, à data, era Olha Pra Mim, lançado em 2002) e Jairzinho Oliveira editara dois (o segundo, Outro, datava também de 2002).

Nos dez anos que entretanto passaram, nenhum deles parou de gravar. Jair Rodrigues, que firmou a sua fama em 1965 ao lado de Elis Regina, no programa O Fino da Bossa mantém aos 74 anos uma energia invejável e vai a caminho da meia centena de discos. Jairzinho gravou um CD/DVD com a irmã em 2010, O Samba me Cantou, depois de vários títulos a solo. E Luciana Mello, que Lisboa agora receberá, lançou L.M. em 2004, Nêga em 2007 e, um ano depois do disco conjunto com o irmão, lançou 6° Solo (2011).

A entrevista que se segue, e que até hoje permaneceu inédita, foi feita no espaço (e no mesmo dia) onde os três se apresentaram, o restaurante/bar Sabor a Brasil, no Parque das Nações, em Lisboa. Nela, Jair e os filhos falam da música e dos elos que os ligam. Foi há dez anos, podia ter sido hoje.

Vocês, Jairzinho e Luciana, pertencem à primeira geração de músicos que já nasceu dentro da música, com pais músicos. Qual é a sensação de crescer com essa herança?

Jairzinho Oliveira – Todos nós sentimos isso como um processo natural. Mas é sempre bom ter uma referência dentro de casa. O Max Viana tem o Djavan, a gente tem o Jair Rodrigues, o Max de Castro e o Wilson Simoninha tinham o Wilson Simonal. O Gonzaguinha, de uma geração anterior, também teve o Luiz Gonzaga. E há ainda os filhos do Caymmi, os filhos e os netos do Jobim… Claro que o meu pai nos influenciou, mas a decisão de fazer música partiu da gente, da nossa própria cabeça.

E a Luciana, também foi para a música porque quis?

Luciana Mello – Sempre tivemos liberdade de escolher. Mas é bom ter referências em casa, para mim foi muito importante. Lembro-me de ir a todos os shows com a minha mãe, aos bastidores, aos estúdios de gravação. Às vezes ficávamos na televisão até à noite. Isso, como escola, não tem preço, nenhuma escola dá essa aprendizagem.

Quando eles ainda gatinhavam na música, já Jair Rodrigues era uma figura de projecção internacional. Como é que via a evolução dos seus filhos na música?

Jair Rodrigues – Deixa começar um pouquinho mais atrás. É gratificante vê-los, mas já não digo o mesmo sobre mim. Quando eu era menino, a minha mãe trabalhava como doméstica e o meu pai trabalhava no mato, na roça. Gostavam muito de festas mas nenhum deles cantava ou tocava. Em mim não foi hereditário. Mas quem sabe se algum de meus avós ou bisavós era músico? No caso destes meninos, essa dádiva de viver dentro da música (a primeira vez que eles gravaram foi comigo) deixa-me muito feliz. Vê-los caminhar pelas próprias pernas, cada um na sua carreira, com o seu estilo…

Se achasse que eles não tinham talento, dizia-lhes?

Jair Rodrigues – Não, nunca diria. Há sempre aqueles que, para tentarem me chatear, dizem: “Puxa, Jair, agora você está botando teus filhos também pra cantar?” Que botando? Eu digo a eles: “Você não vê que esses meninos têm talento?” E a quem tem talento a gente tem obrigação de dar força. Eu, se não puder ajudar, atrapalhar também não atrapalho.

Os seus últimos discos parecem contagiados por uma fase eufórica na sua carreira. Ao fim de 41 discos, este Intérprete vem carregado de energia. Você sente isso?

Jair Rodrigues – Há alguns anos, os pais traziam os filhos para conhecerem o pai do Jairzinho e da Luciana. Hoje já não: eles trazem-nos para conhecer o Jair Oliveira, a Luciana Mello e o Jair Rodrigues. Esta é uma fase mais eufórica minha, porque tudo o que eu sentia há 30 anos está acontecendo. Não tenho músicas nas paradas de sucesso, na televisão ou no rádio, mas não deixo de fazer sempre os meus shows nos finais de semana. E estão sempre lotados, graças a Deus, com gente da minha geração e também da nova.

Como é que a nova geração ouve um cantor como Jair Rodrigues, hoje em dia?

Jairzinho Oliveira – Já que vai haver o Rock In Rio em Lisboa, conto uma história: no Brasil, na edição de 2000, não pude ver o show dele. Mas no dia seguinte, vários jovens vieram ter comigo e disseram: “Puxa, ontem vi o show do seu pai e foi o melhor de todos até agora.” Na verdade é impressionante, nunca vi ninguém com tanta energia. Ele se joga, pula, planta bananeira, canta, assobia e chupa cana. Os jovens ficam impressionados com isso, vão ouvir e compram os discos. O meu pai gravou em 1964 o Deixe isso pra lá, precursor do rap no Brasil e nestes anos sempre gravou de tudo. Este disco é exemplo disso.

E tem produção sua. Você põe o papel de produtor, na sua carreira, ao mesmo nível do de músico e compositor?

Jairzinho Oliveira – Se gostasse menos de alguma função eu pararia. Mas acho que são complementares, porque tenho a chance de produzir vários artistas e aprender com eles. Aprendi muito com Jair Rodrigues, com Luciana Mello, com MPB4, com Tom Zé…

O disco mais recente de Luciana Mello foi muito elogiado pela crítica. Quando tem que encarar um disco, sente-se mais à vontade em quê?

Luciana Mello – Eu vejo um disco como um filho e gosto muito de todas as fases, inclusive aquela que as pessoas consideram mais chata, que é a procura de repertório. Na minha cabeça já tenho uns 500 discos prontos! Depois, a escolha dos arranjos, a escolha dos músicos, a produção... No Jairzinho, que é o meu produtor, eu confio de olhos fechados, sei exactamente que ele vai fazer tudo para que o disco saia a minha cara, ao meu jeito. O facto de eu ter gravados dois discos anteriores a este foi muito importante, porque depois do primeiro, que gravei aos 15 anos, decidi estudar música, canto, piano. E continuo.

Na juventude de Jair Rodrigues, a escola era a rua, eram os outros músicos...

Jair Rodrigues – A escola era a noite! Tanto que o meu aprendizado foi cantar nos clubes nocturnos, que na época a gente chamava de inferninhos. Infernões! Era a escola de quem não podia estudar. A primeira vez que me convidaram a estudar, foi uma professora: “Você canta bem, vamos dar uma lapidada na tua voz.” Eu queria cantar samba, mas ela disse que ali só ensinavam erudito. Então estive lá duas semanas e depois caí fora. Mas serviu-me de alento, foi uma grande lição. Porque hoje não fico rotulado em nenhum estilo.

O que sente, agora, ao cantar uma canção como Zelão (“Todo o morro entendeu/ quando o Zelão chorou / Ninguém riu, ninguém brincou e era Carnaval”)?

Jair Rodrigues – Na noite eu cantava essa música. E gostava muito. Por isso quis regravá-la neste disco [Intérprete]. E deu certo, com a produção do Jair Oliveira.

Você ainda cantou essa canção com Elis Regina, no Fino da Bossa (1965-67). Que memória guarda desse período?

Jair Rodrigues – Foi aí que tudo começou. O primeiro lugar fora do Brasil onde estive foi aqui, em Portugal, em 1965. Estava vindo de um sucesso extraordinário com o “deixe que diga, deixe isso pra lá” e as pessoas queriam conhecer o cachorrão que cantava aquilo.

Era fácil trabalhar com a Elis Regina?

Jair Rodrigues – Sempre foi, porque havia entre nós um respeito mútuo muito grande. Eu era fã dela e ela minha fã. Quando eu tinha que cantar primeiro, ela não saía do palco, ficava dando força, fazendo aquele gesto de felicidade. Era uma irmandade, não só Elis-Jair, mas também Zimbo Trio, Wilson Simonal, Jorge Benjor e quem participasse do programa.

Há pouco, quando falámos no Zelão foi também por causa dos morros do Brasil, um problema que subsiste com algum dramatismo. A canção repete uma velha frase: “Um pobre ajuda outro pobre até melhorar.” Quando é que vai melhorar?

Jair Rodrigues – Já melhorou e bastante! Aquele pessoal, Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha, Zé Kéti, Elton Medeiros, o próprio Paulinho da Viola, os maiores compositores vieram do morro. Quando o Sérgio Ricardo [autor da canção] escreveu “Um pobre ajuda outro pobre até melhorar” acho que ele se referia a trazer esse pessoal do morro para o asfalto. E isso já aconteceu, pelo menos na parte musical.
 

Sugerir correcção
Comentar