Finalmente, Xavier Dolan

E ao quarto filme, o jovem canadiano deixa de servir para o pronto-a-vestir dos “enfants terribles”, e há razão para falar dele como cineasta.

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Xavier Dolan no filme Tom à la ferme Clara_Chapardy
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O realizador Xavier Dolan durante a sessão de fotografias no Festival de Veneza AFP PHOTO / GABRIEL BOUYS

Xavier Dolan, primeiro filme. Não, é a quarta longa-metragem. Mas esta ameaça de boutade serve para dizer da surpresa perante Tom à la ferme (competição), da trágica gravidade que assentou no percurso de alguém, o realizador canadiano, que nunca saíra da insustentável leveza que desde a sua estreia, com J’ai tué ma Mère (2009), lhe valia o título, muito fácil e que se colocava a jeito mas que era incompreensível, e até para o próprio, de “enfant-terrible” do Quebeque - onde Xavier Dolan nasceu em 1989.

Talvez agora se possa sacudir o folclore, e Xavier Dolan começar a aparecer como cineasta, enfim, e não apenas como um fenómeno. Xavier Dolan, primeiro filme, então. Ele assume que sentiu necessidade de abandonar a sua “zona de conforto”. Depois da apresentação de Laurence Anyways em Cannes 2012, sentiu a urgência de filmar, em apenas dois meses. Encontrou o projecto que lhe pareceu adequado.

Tudo começou com uma peça de teatro de Michel Marc Bouchard, um huis clos passado no Quebeque rural. Aí três personagens participam da violência e de uma mentira para esconder de uma mãe (Lise Roy, que interpretou o mesmo papel no palco) a (homo)sexualidade do filho morto. E são elas: o antigo companheiro que vem para o funeral (interpretado pelo próprio Dolan, melena agora loura mas como sempre calculadamente despenteada), uma rapariga que vem representar o papel de namorada do morto e o irmão dele (Pierre-Yves Cardinal). É este que obriga os outros à encenação, à mentira.

Dolan, cineasta (se calhar vai ser preciso perder o pudor...), desarranja o huis-clos e as convenções teatrais fazendo soprar sobre aquele grupo rajadas de um vento de loucura, medo e desejo. São sentimentos e pulsões que nunca se tinham avistado em qualquer dos seus filmes anteriores. É com esse vento que se faz a interacção entre as personagens de Xavier e de Pierre-Yves Cardinal. Não é verdadeiramente uma relação, porque ela nunca se chega a estabilizar. É, como dizia Dolan em conferência de imprensa, “o mergulho na psicose e na nevrose de dois seres”, o ex-companheiro e o irmão do morto, que dessa forma, violentando e submetendo-se à violência, fazem o que podem com o seu luto.

A tensão de Tom à la ferme é alimentada por esta pura manifestação do desejo: não há a consciência do que está em causa, porque a personagem de Xavier não pode sequer nomear o que lhe está a acontecer. De outra forma o estar refém da brutalidade de Cardinal configuraria uma relação sadomasoquista, mas o que é violento no filme é essa espécie de virgindade perante o perigo, a dor e a ameaça de violação. E é por isso que o cineasta Dolan arrisca, por suspender o filme nesse fluxo, nessa virgindade. Quando a consciência chega, o filme interrompe-se. Nesse momento, Rufus Wainwright canta, contra uma certa América, contra a intolerância, Going to a Town.
 

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