Cordel do fogo encantado

1. Fui visitar o agricultor que lê Agamben. Dou-lhe já um nome? Ok, chama-se José (chama-se mesmo José). Também lê, por exemplo, a Ética de Espinoza todos os anos, como as colheitas. Desde 1677 que pelo menos alguém o faz do começo ao fim. Tanta coisa para fazer pela primeira vez e tanta coisa para repetir. Em rigor não fui visitar José, ele veio buscar-me.

2. Já passara aqui na véspera, deram-me o recado: recebia amigos da minha idade, matara um borrego, queria partilhar. Eu demorara na metrópole, dois dias em vez de um, então quando cheguei os amigos já haviam partido, já não havia borrego, mas saber disso foi como ter uma carta: eu chegara a casa. Este silêncio de muro com copa de laranjeira. Claro, o cheiro doce era esse.

3. Liguei para um número fixo, o único que José tem, atendeu com voz de trovão. Combinámos hora, ele chegou ao minuto, calcou a terra do quintal, disse que estava pronta. Uma mensagem no meu telefone anunciou um nascimento, tarde de mais para visitas na maternidade. Restava manter o combinado, irmos às terras de José, que entretanto já esperava na carrinha, com uma cassete a bradar do sertão de Pernambuco. Era o Cordel do Fogo Encantado entre o gato da vizinha no degrau e os cães de queixo no muro. Nem ladraram quando José arrancou, mudando a cassete de lado, onde estava o poema:

Se um dia nóis se gostasse
Se um dia nóis se queresse
Se nóis dois se empareasse
Se juntim nóis dois vivesse
Se juntim nóis dois morasse
Se juntim nóis dois drumisse
Se juntim nóis dois morresse
Se pro céu nóis assubisse
Mas porém se acontecesse
De São Pedro não abrisse
A porta do céu e fosse
Te dizer qualquer tulice
E se eu me arriminasse
E tu cum eu insistisse
pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvês que nóis dois ficasse
Tarvês que nóis dois caísse
E o céu furado arriasse
E as virgi toda fugisse

Pernambuco-Alentejo atados por um cordel, e ainda vamos a tempo de recolher as ovelhas.

Foto
Alexandra Lucas Coelho

4. Quatro quilómetros na direcção em que o sol desce. Pergunto o que são as flores violeta: linho. Mais adiante, oliveiras de mil anos, contemporâneas dos árabes. Já sentira a confluência do tempo mas não do espaço, por uma fracção de segundo não me lembro onde estou, Mediterrâneo ou Atlântico Sul. Estacionamos; dezenas de gatos; um arbusto de lírios, outro de absinto; árvore bifurcante, limões de um lado, laranjas do outro; até palmeiras; até uma tamareira. Azul-anil misturado na cal porque afasta os insectos, diz José.

5. A cozinha é o centro da casa. Tecto de telha-vã, lareira de chão tão grande que me ponho em pé dentro dela, ponto de fuga no céu, lá muito em cima. Aqui passa José seis meses por ano, cá estão os assentos para ler junto ao fogo. A biblioteca segue contígua, com uma porta que podia estar na Síria, como tudo o resto, aliás, os nichos dos livros e da música, a janela, o tapete. Eu só sabia que tinha de morar no Alentejo, entretanto vou sabendo porquê. É uma síntese.

6. Temos de ir às ovelhas antes que escureça. Passamos um poço com uma pincelada de cal na borda para ser visto de noite. Aqui e ali, uma garrafa pendurada numa oliveira, insecticida feito de urina. A agricultura biológica aproveita tudo, José acredita que nestas terras, onde já crescem os netos, nunca entraram químicos. Da poda das oliveiras vêm, além dos troncos para o fogo, ramos com que se entrançam as cercas. Fica a paisagem isto, manto florido, oliveiras grossas e cercas que parecem uma filigrana. É que as ovelhas entram pelas hortas, estragam o que espera o Verão, estação de mais trabalho em todo o ano. Há que contê-las, e neste caso são 47, mais o borrego nascido ontem. Calha que, quando José as avista, já elas se recolheram sozinhas, só falta fechar a cerca. O recém-nascido é uma coisa trémula nas quatro patas, mãe atrás afiando uma pata, alerta a intrusos. O filho mais velho de José, também já pai, observa-o. Acaba de colher um molho de poejo, o perfume sobe no ar. Bom para sopa de cação.

7. Peço para voltar a pé, José deixa-me no começo da antiga linha de comboio, agora dedicada a passeantes. Cordel do fogo encantado seria um bom nome a esta hora rubra. Um cordel que conduz à colina do castelo e depois a contorna, deixando-me no sopé de casa. Subo como quem vem de uma pintura.

8. Então no dia seguinte parto uma abóbora e pela primeira vez não deito fora as sementes. Lavo-as numa cuia da Amazónia, aquilo a que no Alentejo se chamaria malga, tigela (ou como será?). Ainda não sabia o que fazer dela, fica de estendal às sementes, até que sequem (e depois?). Ao fim da tarde o Nuno aparece com dois pés de jasmim, deu por eles numa oficina, nunca reparara. Cavamos terra junto ao muro, está fofa e negra, José tinha razão. Tenho seis meses para começar a ver o que acontece todos os dias.     

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