Como fazer África dar a volta ao mundo em Cabo Verde?

À segunda edição, o Atlantic Music Expo duplicou o número de participantes e tornou-se o mercado de referência para a indústria musical em todo o continente africano – mais cedo do que estava à espera. Mas o atraso estrutural da região continua a fazer do comércio triangular em que Cabo Verde quer especializar-se toda uma aventura.

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Os Ferro Gaita, referência no funaná desde a década de 90, podem ter dado o salto no AME TÓ GOMES / ATLANTIC MUSIC EXPO
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Showcase de Nancy Vieira TÓ GOMES/ATLANTIC MUSIC EXPO

Régis Sissoko está habituado a desbravar uma das florestas mais mortais de todo o continente africano – e se imaginarmos rios infestados de serpentes, ataques-surpresa de milícias canibais, enxames de abelhas assassinas, o A a Z das doenças do Terceiro Mundo e toda a pirâmide alimentar da corrupção local, não estaremos a delirar, apenas chegámos ao coração da República Centro-Africana.

 Incrível, portanto, que, depois das idas e vindas a que sobreviveu para contar, levante o braço no final da conferência que abriu a segunda edição do Atlantic Music Expo (AME), em Cabo Verde, para dizer que descobriu recentemente uma floresta ainda mais impenetrável, só que no coração da Europa.

Foi em 2003, quando um dos mais importantes centros culturais do mundo, o Barbican, decidiu convidar o coro de pigmeus Nzamba Lela, de que Sissoko é produtor desde que nos anos 1980 descobriu que havia vozes escondidas na floresta, para um concerto em Londres. “Já tínhamos ido ao Brasil através do [ex-ministro da Cultura] Gilberto Gil, já tínhamos ido aos EUA… Mas conseguir os vistos para ir a Londres foi uma odisseia. Não há embaixada britânica na República Centro-Africana e tive de me deslocar aos Camarões, onde o jovem funcionário que me atendeu se estava completamente nas tintas para o caso e insistia em obrigar-me a refazer a viagem para trás e a voltar com os 16 pigmeus, para se certificar de que existiam. É importante sublinhar que estamos a falar dos últimos representantes de uma das tradições musicais mais antigas de que há registo no mundo (há referências à polifonia a quatro vozes dos pigmeus aka na Ilíada e sabe-se que os egípcios desceram ao fundo de África para os pôr a entreter os faraós), e que a UNESCO classificou em 2003 como Património Imaterial da Humanidade”, explica mais tarde ao PÚBLICO num intervalo das conferências do AME 2014, que na quinta-feira chegou ao fim na Cidade da Praia.

O “caso” dos Nzamba Lela resolveu-se com um telefonema de Sissoko para o Barbican e outro do Barbican para os Negócios Estrangeiros. “O nosso trabalho é cada vez mais político”, confirma Brynn Ormond, um dos programadores do departamento de música da instituição, convidado pelo AME a intervir no painel dedicado ao tema dos intercâmbios transatlânticos, precisamente o core business deste mercado triangular (Cabo Verde quer ser o ponto médio entre África, a América e a Europa) co-organizado pelo Ministério da Cultura de Cabo Verde, a produtora e editora Harmonia e o fórum mundial Womex. “O maior desafio que se coloca a quem programa world music no Reino Unido é que nós dificultamos imenso as coisas. Obter um visto é cada vez mais difícil para os artistas africanos. Tenho vergonha de o dizer, mas nós obrigamo-los a fazer viagens enormes só para chegarem a uma representação diplomática britânica, a esperar quatro dias por uma audiência... É dispendioso, é demorado, é cansativo, é árduo. Mas quando acreditamos que temos de ter determinado artista no Barbican fazemos tudo, sejam quais forem as dificuldades administrativas ou burocráticas, para garantir que a coisa acontece. Obviamente, nem todas as instituições têm o poder e a dimensão que permitem ao Barbican exercer continuamente pressão política”, responde a Sissoko.

 Traduzindo: nem todas histórias acabam bem como a dos Nzamba Lela, que conseguiram efectivamente chegar a Londres a tempo de integrar o programa de comemorações do 80.º aniversário do compositor húngaro György Ligeti e se tornaram num dos acontecimentos para mais tarde recordar da vida do Barbican (até hoje, a instituição britânica exibe-os orgulhosamente no álbum de fotografias dos seus primeiros 25 anos). Mas os últimos três dias podem perfeitamente ter sido o início de outras belas amizades: só num ano, e depois de uma primeira edição que juntou mais de 200 profissionais da indústria musical vindos de cerca de 40 países, o AME duplicou a sua dimensão (os números ainda não são definitivos, mas esta semana terão chegado à Cidade da Praia para fazerem o seu caminho no mercado 450 a 500 participantes, entre artistas, produtores, editores, programadores, agentes e jornalistas).

Talvez seja cedo para afirmar que é já “a terceira melhor feira de world music do mundo, logo a seguir ao Womex e ao Babelmed”, como publicitou o omnipresente ministro da Cultura (e músico) Mário Lúcio na cerimónia de abertura de segunda-feira na Assembleia Nacional – sinal do compromisso do Governo cabo-verdiano em fazer do AME uma das suas jóias da coroa: seis ministros presentes, incluindo o chefe do executivo, José Maria Neves –, mas não é cedo para admitir que já seja a feira de referência no espaço africano. “O AME tornou-se seguramente o principal mercado de música de toda a África, tanto em termos de número de participantes internacionais como em termos de negócio”, garante José (Djô) da Silva, o patrão da Harmonia. “É uma óptima surpresa: nunca duvidámos de que seria possível, mas pensávamos que demoraríamos mais tempo a chegar a este ponto”, acrescenta a delegada do Womex responsável pelo AME, Christine Semba, dividida entre 1001 tarefas, todas urgentes: “Sim, estamos a ser vítimas do nosso próprio sucesso."

"A vez da verdade"

“O momento é de celebração, mas não de descanso, porque a segunda vez”, lembrou Mário Lúcio na cerimónia de segunda-feira, “é a vez da verdade.” E a verdade sobre o segundo AME é que a multidão de visitantes desta semana (e que inclui figuras de referência como Bil Bragin, director de programação pública do Lincoln Center, em Nova Iorque, ou Jay Rutledge, o patrão da editora Outhere) está a testar os limites da Cidade da Praia, sobretudo ao nível de itens básicos como os transportes (mesmo participantes dos países do lado, como o director do maior festival de hip-hop no Senegal, Amadou Fall Ba, podem demorar mais de dez horas a chegar à capital cabo-verdiana) e os restaurantes (sempre cheios à hora do jantar). “Não é muito, mas desde o ano passado há mais um voo internacional a chegar à Praia, da Royal Air Maroc. Precisamos urgentemente de mais, mas não depende de nós”, reconhece Djô da Silva.

E já que falamos de Amadou Fall Ba: “São muito importantes as perspectivas abertas pela economia digital, mas é preciso lembrar que num país como o Senegal há cidades inteiras que ainda estão por electrificar. Para que ela passe a ser uma realidade, é preciso perceber se os governos estão dispostos a fazer os investimentos pesados que são necessários.” O Governo cabo-verdiano parece estar – por enquanto, pelo menos, continua a pagar para fazer da música o petróleo cabo-verdiano: “Soa tão bem esta ousadia de realizarmos o AME em Cabo Verde. Nós cantamos quando nasce uma criança, cantamos quando amamos, cantamos quando trabalhamos, fazemos serenatas ao longo de toda a nossa vida e vamos a enterrar com música, por isso é a hora de fazer dela o nosso desenvolvimento, gerando empregos e reduzindo a pobreza”, disse o primeiro-ministro na mesma cerimónia.

A seguir, usou a palavra que está nas entrelinhas do AME: “A música sempre foi uma forma de vida, agora tem de ser também negócio.” É a palavra a que Djô da Silva recorre para medir o sucesso do AME: “É difícil quantificar, mas sabemos que vários artistas seleccionados para os showcases da primeira edição conseguiram contratos depois das suas apresentações, mesmo num mercado que não tem sido imune à crise. O Zé Luís foi a grande descoberta do ano zero e daí se projectou para um disco e uma tournée muito bem-sucedida em França; a Neuza explodiu no ano passado a partir do espectáculo que deu no AME; e, este ano, quem viu o concerto dos Ferro Gaita na Rua Pedonal sabe que em condições normais alguma coisa irá acontecer com eles.”

Christine Semba prefere usar a palavra "qualidade" – qualidade das conferências, qualidade das formações, qualidade dos showcases. Não há outra via para tornar o AME um mercado incontornável para os profissionais da indústria – um mercado onde façam questão de estar, mesmo que tenham de pagar. A dois anos da projectada saída do Governo para os bastidores do AME (até 2016, o Estado pretende retirar-se progressivamente do financiamento do evento, que por enquanto suporta quase integralmente, ainda que nesta segunda edição tenha contado com um substancial reforço orçamental da agência do Luxemburgo para a cooperação e a ajuda ao desenvolvimento), a maioria dos participantes continua a vir por convite e o número de inscrições pagas mantém-se abaixo de um terço, embora tenha aumentado. É a pensar nisso que Mário Lúcio escolhe a sua palavra, “privados” (e é de acreditar que neste jogo também triangular de palavras seja ele a ter a última): “O AME será um sucesso se o Estado o entregar aos privados e os privados o assumirem, continuando a obra sem qualquer espírito de dependência.” Ainda estamos “em tempo de plantio”. Mas o ministro da Cultura de Cabo Verde já está a pensar na colheita.

O PÚBLICO viajou a convite da Tumbao

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