A eficácia pertenceu aos Killers e Kaiser Chiefs, o melhor concerto foi assinado por Samuel Úria

No dia em que destacamos o concerto de Samuel Úria, os muito esperados Killers e Kaiser Chiefs deram ao público exactamente o que o público queria: as canções mais célebres e o aparato de palco. Desilusão do segundo dia de Super Bock Super Rock? Miguel.

Fotogaleria
Ricky Wilson, vocalista dos Kaiser Chiefs PÚBLICO/José Sarmento Matos
Fotogaleria
Ricky Wilson José Sarmento Matos
Fotogaleria
Ricky Wilson José Sarmento Matos
Fotogaleria
Concerto dos Kaiser Chiefs José Sarmento Matos
Fotogaleria
Fãs dos Kaiser Chiefs PÚBLICO/José Sarmento Matos
Fotogaleria
Fãs dos Kaiser Chiefs José Sarmento Matos
Fotogaleria
Fãs dos Kaiser Chiefs José Sarmento Matos
Fotogaleria
Peter Hayes, dos Black Rebel Motorcycle Club. A banda norte-americana abriu o palco principal no segundo dia de festival PÚBLICO/José Sarmento Matos
Fotogaleria
Robert Turner, Black Rebel Motorcycle Club José Sarmento Matos
Fotogaleria
Mike Patton actuou com o seu projecto Tomahawk José Sarmento Matos
Fotogaleria
Ambiente do festival José Sarmento Matos
Fotogaleria
Ambiente do festival José Sarmento Matos
Fotogaleria
No parque de campismo José Sarmento Matos
Fotogaleria
No parque de campismo José Sarmento Matos

Os Killers e os Kaiser Chiefs. Duas bandas de discografia em queda, mas que construíram uma colecção de canções que caíram no ouvido do grande público e que sabem perfeitamente o que é necessário para conquistar o público de um festival de massas, transversal, como é o Festival Super Bock Super Rock.

A primeira, que tem lasers, pirotecnia, confetti prontos a disparar, é inexplicavelmente ciosa da sua imagem (fotógrafos estavam proibidos de fazer o seu trabalho) e apresentou canções, como Human, que são verdadeiros vírus que contaminaram irrediavelmente multidões mundo fora. Os segundos têm a história da brit pop na ponta da língua e fazem dela motivo para uma celebração lúdica, corporizada no maratonista/malabarista/contorcionista Ricky Wilson, vocalista que sua as estopinhas para provar que “there's no business like show business”. Era para elas que a maioria das pessoas estava na Herdade do Cabeço da Flauta, no Meco, na sexta-feira, quando o pó, à medida que a noite avançava, iniciava com fulgor as suas manobras invasivas depois de dois dias de solo pisado por vinte e muitas mil pessoas (28 mil na sexta-feira, segundo a organização).

Porém, não foram os cabeças de cartaz a mostrar aquilo que de mais estimulante musicalmnte passou pelo festival. Olhos e ouvidos em Samuel Úria, trovador inspiradíssimo e rocker incendiário, que encheu o palco da Antena 3. Bem-vinda seja a afinadíssima pop dos Clã no palco EDP, onde Manuela Azevedo, transbordante de energia, contagiou aqueles que se mantiveram agarrados a H2 Homem ou GTI enquanto Ricky Wilson e companhia irrompiam pelo palco principal. E, no início de tudo, o primeiro nome em acção no segundo dia de festival, quando o relógio se aproximava das 20h: Manuel Fúria e seus Náufragos, macro banda engrandecida por metais, violinos e bandolim, a mostrar as suas vistas largas para canções de um romantismo activo, de uma melancolia que é resistência a estupidificação “modernaça” do progresso.

Perante pouco mais que uma centena de pessoas, um homem com chapéu, colete e lenço ao pescoço, qual liberal de tempos idos em versão rock'n'roll, diz que é um orgulho tocar ao mesmo tempo que os Black Rebel Motorcycle Club e informa que o concerto a que assistimos está a ser especial porque as cordas da sua guitarra estão a ser tocadas com uma palheta oferecida por Johnny Marr, o guitarrista dos Smiths que tocara no Super Bock Super Rock no dia anterior. Isto, de certa forma, decifra aquilo a que assistimos: a escola pop, da new-wave à folk barroca ao rock de guitarras angulares, capturada por um espírito inteiramente desta terra. Que canta as canções do belíssimo Contempla os Lírios do Campo, canções como Que haja festa não sei onde ou Jogo do sapo acompanhado por membros dos Capitão Fausto ou Pontos Negros, entre outros, e que se atira a uma versão de Tony Carreira sem ironia – também Manuel Fúria tem Sonhos de menino.

A massa de gente impressionava

Enquanto isso, no outro extremo do recinto, passando a feira de bancas dos patrocinadores sempre desejosas de protagonismo, os Black Rebel Motorcycle Club haveriam de lançar o grito que é, ainda hoje (e, arriscamos, sempre será), a faúlha da sua criatividade: Whatever happened to my rock'n'roll. Esse torpedo sensorial, canção catarse, chegaria mesmo no final, antes do blues infernizado e distorcido de Spread your love, cantado por Robert Levon Been, baixo empunhado como arma apontada ao público, junto às grades.

Não foi, não podia ser, um concerto arrebatador – demasiada luz e demasiado cedo para o trio que veste integralmente de preto. Mas mostrou-nos uma banda que, mais de uma década depois, continua convictamente fiel à sua crença no rock'n'roll como força regeneradora, arrebatadora: há blues e tentação psicadélica nas guitarras, ou seja, a visão de uns Jesus & Mary Chain com a discografia de John Lee Hooker na ponta da língua, um baixo que nos amarra com firmeza no seu balanço violentamente hipnótico e uma bateria que não se desvia um milímetro da sua função primeira, ser a fundação que suporta todo o edifício. Berlin, Six barrel shotgun, Bad blood. Canções oferecidas ao público que chegava da praia, limpinho e lavadinho, juntando-se aos que iam começando, lentamente, a preencher o espaço.

Horas depois, noite alta, já com o “limpinho e lavadinho” como memória distante, o cenário alterara-se completamente. Não estávamos próximos da enchente, perigosamente desconfortável tendo em conta a dimensão do recinto, registada há dois anos para os concertos de Strokes ou dos repetentes Arctic Monkeys (cabeças de cartaz no arranque do festival, quinta-feira), mas ainda assim a massa de gente aglomerada impressionava. Em palco, um homem de sorriso eterno, Brandon Flowers, cantando a eficaz synth pop adaptada a banda rock de Somebody told me, fórmula que primeiro fez o sucesso dos Killers e que a banda do Nevada, apesar de algumas fugas ao guião, manteve até hoje como a sua matriz.

Foi, naturalmente, uma entrada a matar perante um público que, de qualquer forma, estava conquistado à partida. Esta era, ao lado dos Kaiser Chiefs, a banda a ver. Não, certamente, o rock demencial dos Tomahawk, o mais próximo, excluindo naturalmente os Faith No More, que Mike Patton esteve do “convencional” - demencial ainda assim. Guitarras serra eléctrica, bateria tonitruante, Patton como performer da voz alucinada, muito peso no limite do metal (versão mutante), muita canção recheada de curvas e contracurvas: um nada discreto açoite ao público, desconhecedor de qualquer tipo de subtileza. Apesar do aparato da encenação, chamemos-lhe assim, o público, largando gargalhadas quanto Patton dava largas ao seu vernáculo em português, seguiu os Tomahawk, presos no seu universo, como quem olha uma curiosidade que permita passar o tempo antes de a coisa se tornar séria. E tornou-se “séria”, em euforia popular, com os Kaiser Chiefs que se seguiram e com os Killers que surgiram depois deles. É a eles que regressamos.

Passava já da uma da manhã quando se ouviu Somebody told me. Na hora e meia seguintes, a banda de Brandon Flowers teve o público a cantar consigo, canção após canção, a dançar muito efusivo ou a abraçar muito abraçado o parceiro quando se anunciava uma balada. “Somos os rapazes da cidade do pecado, Las Vegas”, dizem a determinado momento. Mas o pecado, na verdade, ficaria envergonhado com estes rapazes.

A sua música, afinal, é totalmente inofensiva, conjugando letras de “boys-meet-girl e vamos ser felizes para sempre” a manual de auto-ajuda em versão pop (“se acreditarmos mesmo, vamos conseguir e por aí fora”). Sob o filtro 80s dos sintetizadores e do ritmo para dança amistosa (pé no bombo e levanta o prato de choque), esconde-se um compêndio de diversos gestores de emoções, a percepção exacta de como criar melodias épicas como em anúncio publicitário (até Shadowplay, versão dos Joy Division, surge domada e com coros preparados para conforto da comunidade) e, sempre, um piscar de olhos aos velhos tempos dos concertos de estádio – o guitarrista Dave Keuning e os seus solos à guitar-hero de Peter Frampton; o solo de bateria, felizmente curto, de Ronnie Vanucci Jr., aquando da apresentação da banda.

Ou seja, neste concerto inegavelmente eficaz (o público transbordou de felicidade e saltos e cantoria), vislumbrou-se algo das reverberações de The Edge, dos U2, em Change your ways (toda ela retro 80s). Em sentido contrário, em The way it was, do último álbum, Battle Born, percebemos que o sentimentalismo rock de uns Toto, congregadores de multidões há 30 anos, se alojou na memória criativa da banda – sempre com o filtro modernaço como caução protectora. Em Miss atomic bomb, também de Battle Born, aguardamos pela entrada de Billy Joel entre os desenhos de luz com raios laser para juntar o seu piano à pompa gingona da canção.

Antes disso, quando Flowers toca sozinho alguns versos de Human, imaginamos Richard Marx, baladeiro ao piano da década de 1990, erguer o polegar em aprovação e, mais à frente, com A dusland fairytale e centenas de isqueiros acesos para acompanhar o andamento da balada, comprova-se que os Killers sabem realmente como pôr a sua fórmula a funcionar – o ritmo infatigável, os refrões que se abrem para acolher mil vozes e que se prolongam indefinidamente para que o efeito seja mais duradouro.

Antes do encore Brandon Flowers exclamou esse enigmático I've got a soul, but I'm not a soldier de All these things I've done. Em encore, ouviu-se Jenny was a friend of mine, When you were young e Mr Brightside, as luzes e os lasers iluminaram mais um pouco e o público aplaudiu e voltou para casa saciado. Brandon Flowers continuou a sorrir perante um trabalho bem feito.
 

Os Kaiser Chiefs nunca enganam

Antes deles, fora a vez dos Kaiser Chiefs, que poderemos classificar em caricatura como “the hardest working band in the showbiz”. Depois de Unemployment, o belíssimo primeiro álbum, não mais conseguiram ser, em estúdio, uma banda em estado de graça. Os palcos, porém, são todos deles. E, na verdade, fazem por merecê-lo. São uma revisita à tradição pop britânica dos últimos trinta anos (dos Blur aos Oasis, dos Kinks aos Undertones) sem outra pretensão que não a de fazer a festa com as multidões que, por força dos concertos, se habituaram a segui-los. No Super Bock Super Rock não foi diferente.

Ouviram-se clássicos como Na na na na, Modern way, Never miss a beat ou a muito esperada Ruby, entoada por vinte e tal mil almas. A explosiva I predict a riot, com tocha rebentando entre a assistência e tudo, e, no fim, essa My God que levou Ricky Wilson até ao topo de uma das barracas de venda de cerveja, número que já o víramos fazer há alguns anos no Optimus Alive. Os Kaiser Chiefs nunca enganam. São banda de palco. Embaixadores, sem sobressalto e sem rasgo, mas com bom gosto, da pop britânica.

Entre eles e os Killers, no Palco EDP, vimos Miguel, nome em destaque no r&b contemporâneo, discípulo de Prince no falsete e no jogo de sedução, actuar deslocado e desinspirado. Vestiu casaco de cabedal com farripas, mandou a banda serenar para dar conselhos sentimentais ao público e tentou, sem sucesso, vestir a pele de Marvin Gaye. A aspereza rock da banda não faz bem a canções feitas originalmente de subtileza digital como The thrill, ainda assim o melhor momento do concerto. Foi uma oportunidade perdida. Precisamente o contrário de Samuel Úria. Com o recente autor de O Grande Medo do Pequeno Mundo, tudo foi ganho.

Deixando a subtileza trovadora de lado, vestiu a pele de rocker (que é também a sua, como sabemos) e, perante algumas centenas de convertidos ou em processo acelerado de conversão, assinou o melhor concerto do segundo dia de Super Bock Super Rock. Berrou Ninivitas com um Manuel Fúria resgatado à plateia, afinou as vozes com a banda para a balada sonhando com a  country de Sião, pôs a dança rock'n'roll em movimento com Teimoso, quase silenciou todo o ruído em volta da tenda com essa magnífica Barbarella ou barba rala e acabou olhando de frente o esgar ameaçador desse Tigre dentes de sabre que se prolongou demoradamente para nosso prazer.

Isto aconteceu sexta-feira. Sábado, o festival encerra com os Queens of The Stone Age como grande destaque, num dia que também receberá concertos dos Chk Chk Chk, We Are Scientists, Quartet of Woah, Ash ou Gary Clark Jr.

Notícia alterada às 15h56, corrigindo nome de álbum e de canção dos Kaiser Chiefs
 

Sugerir correcção
Comentar