É possível comer melhor e proteger o planeta? Há um plano de alimentação que mostra que sim

A WWF e a APN criaram um plano de alimentação para sete dias que se dirige a famílias com quatro pessoas. As ementas dão destaque aos alimentos de base vegetal, mas mantêm o peixe e a carne.

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O plano de alimentação da APN e WWF incluiu produtos de origem vegetal e animal Teresa Pacheco Miranda
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Certamente já ouviu falar de literacia financeira, mas será que conhece a expressão literacia ​alimentar? A Associação Natureza Portugal (ANP/WWF) e a Associação Portuguesa de Nutrição (APN) desenvolveram, em conjunto, um plano alimentar que pretende incentivar uma “alimentação que simultaneamente cumpra as recomendações nutricionais e também o limite da pegada de carbono”. O plano alimentar está disponível desde esta segunda-feira no site da WWF e abrange um período de sete dias, dirigindo-se a um agregado familiar composto por quatro pessoas: um adulto masculino, um adulto feminino, um adolescente e uma criança, que têm necessidades nutricionais diferentes.

Ovos, leguminosas, cogumelos, leite, queijo, iogurtes, frutos oleaginosos e o azeite como gordura fundamental são alguns exemplos de alimentos que compõem os pratos dos planos. Mas a carne e o peixe também têm lugar à mesa nas ementas semanais apresentadas agora. O objectivo é alcançar um equilíbrio.

Este plano alimentar que as duas associações elaboraram em parceria baseou-se em métricas nutricionais e ambientais. Para conceber as ementas, “calcularam-se as necessidades energéticas e nutricionais de cada membro do agregado, considerando que os hidratos de carbono correspondem a 50%, a proteína a 20%, e a gordura a 30% do valor energético total”, explicam as associações.

Além disso, o plano não descurou o Acordo de Paris que estabelece um limite para as emissões de gases de efeito de estufa por pessoa. “Há uma estimativa desse valor, que é um valor equivalente a 2,04kg de CO2. O desafio aqui era tentar que a nossa alimentação, um dia alimentar, pudesse ser enquadrada dentro desta meta”, explica Helena Real, secretária-geral da APN.

Na tentativa de limitar o aquecimento global a não mais do que 1,5 ºC até 2050, como estabelece o Acordo de Paris, os promotores da iniciativa conseguiram “perceber qual era exactamente o valor da pegada climática de cada indivíduo”, tentando que “os planos cumprissem as recomendações nutricionais nacionais e, ao mesmo tempo, estivessem dentro desse limite de pegada”, diz Tiago Luís, coordenador de Alimentação na ANP/WWF.

As associações estimam que “nos valores médios da pegada de carbono das refeições principais apresentadas no plano semanal proposto um adulto masculino que consumisse todos os dias da semana carne ou peixe a todas as refeições principais conseguiria uma diminuição média da pegada de carbono em cerca de 13,64%, se adoptasse o plano, que inclui algumas refeições por semana à base de plantas”.

Por sua vez, no adulto feminino a redução seria de 24,32%, no adolescente iria corresponder a 11,54%, na criança seria de 14,29% e para o agregado familiar seria de 19%.

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Frutas e legumes devem ser alimentos privilegiados na alimentação dos portugueses Nelson Garrido

Mais produtos de origem vegetal, menos de origem animal

Na mesa dos portugueses, a carne é protagonista, mas pode passar para segundo plano. Se trocarmos o peixe ou a carne por proteínas de base vegetal em algumas refeições, vamos estar a beneficiar o ambiente, mas também a nossa saúde. A ideia não é nova, mas vale sempre a pena reforçar o apelo.

Helena Real exemplifica aquilo que as refeições que incluem no plano englobam. “Propomos algumas refeições que não têm presença de alimentos de origem animal, ou seja, não têm carne, não têm peixe, não têm ovos.”

Do outro lado da moeda, é possível “ter um pequeno-almoço que tem lacticínios, que são de origem animal, e podemos estar a falar num almoço que tem carne, ou pescado, ou ovos, por exemplo, e de um jantar que já não vai ter estes alimentos”.

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O plano de alimentação é semanal e inclui alimentos de todos os grupos da roda alimentar, explica Helena Real, secretária-geral da APN Miguel Manso

O programa é “composto por pequeno-almoço, lanche da manhã, almoço, lanche de tarde e jantar e no total diário estes planos respeitam as recomendações nutricionais quer a nível dos macronutrientes, quer a nível dos micronutrientes”, sublinha Tiago Luís. Os alimentos frescos e sazonais foram também privilegiados neste plano.

Em Portugal, o consumo de produtos de origem animal é muito elevado, em detrimento de produtos de origem vegetal. Segundo o Inquérito Alimentar Nacional e de Actividade Física (IAN-AF), referente ao período de 2015 a 2016, a população portuguesa consome em média mais alimentos de origem animal, pertencentes ao grupo dos lacticínios e ao grupo da carne, pescado e ovos. Por outro lado, os portugueses consomem menos fruta e hortícolas do que o recomendado pela Roda da Alimentação Mediterrânica.

O caminho é reduzir os produtos de origem animal

No entanto, o consumidor não precisa, nem deve sentir-se forçado a eliminar, por completo, o consumo de alimentos de origem animal. “Nós não precisamos deixar de comer alimentos de origem animal. Isso é realmente aquilo que também pretendíamos demonstrar, porque, às vezes, quando se fala sustentabilidade alimentar, há aqui uma tendência para o radicalismo”, concretiza Helena Real.

A grande diferença reside, então, “na proporção dos alimentos face àquilo que, normalmente, os portugueses estavam habituados a comer”. “É importante termos a noção de que é possível, com um equilíbrio alimentar, através de uma alimentação diversificada de diferentes grupos alimentares, conseguimos atingir estes limites planetários”, diz aquela responsável, apontando o guia alimentar português, que é a Roda da Alimentação Mediterrânica.

Se a população optar por reduzir significativamente o consumo de produtos de origem animal, substituindo-os por outros de origem vegetal, o resultado vai ser benéfico para atingir os limites planetários e contribuir para uma alimentação saudável e equilibrada.

“Pretende-se passar a mensagem de que, de facto, é fundamental reduzirmos a quantidade de alimentos de origem animal que consumimos. Portanto, reduzir não é deixar de comer, é reduzir”, reitera a secretária-geral da APN.

Na elaboração do plano teve-se ainda em conta os hábitos alimentares tradicionais dos portugueses. “Os exemplos que apresentamos consistem em refeições muitas vezes adaptadas daquilo que são as nossas refeições mais usuais ou tradicionais da nossa cultura”, esclarece Tiago Luís, da Natureza Portugal. “Temos essa preocupação de tentar aqui respeitar minimamente as nossas tradições gastronómicas.”

O impacto da nossa alimentação no planeta e na saúde

O coordenador de alimentação na ANP/WWF explica que a alimentação “é responsável por cerca de 26% a 32% de emissões de gases com efeitos de estufa e por cerca de 80% da desflorestação, o que advém, por exemplo, da produção de alimentos, como a soja ou outros, e que servem essencialmente para produção animal e depois vão servir para alimentar os animais e não propriamente os humanos”.

“É também o maior driver de perda de biodiversidade terrestre, com cerca de 70% na Terra e 50% em água doce.” Em relação ao uso da água em Portugal, Tiago Luís afirma que cerca de 75% a 80% do consumo vai para a agricultura, sabendo-se que “cerca de 52% das terras se encontram degradadas pelas más práticas agrícolas”.

Pizzas e anos de vida saudável

Produtos como bolos, pizzas, bolachas, refrigerantes, bebidas alcoólicas, entre outros alimentos desse tipo, totalizam 21% do consumo total diário dos portugueses. Estes (maus) hábitos alimentares são o terceiro principal factor de risco que mais contribui para o total de anos de vida saudável perdidos, nomeadamente devido a doenças metabólicas, doenças cardiovasculares e cancro. Para além disso, ainda segundo o IAN-AF, estas práticas, aliadas à baixa actividade física, contribuem para o problema de excesso de peso, com 34,8% da população a apresentar pré-obesidade e 22,3% a ter obesidade.

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Leguminosas foram privilegiadas nos alimentos escolhidos para integrarem o plano SÜHEYL BURAK/UNSPLASH

O estudo diz ainda que mais de metade da população, 56%, não atinge a recomendação da OMS para o consumo de 400 gramas por dia de fruta e vegetais, que equivale a cinco porções dia. É de notar que esta discrepância é ainda mais elevada nos adolescentes (78%) e nas crianças (72%).

Um estudo recente publicado na revista British Medical Journal (BMJ) diz também que a alimentação processada (vulgo, fast-food) tem “uma associação directa a 32 parâmetros de saúde que abrangem a mortalidade, o cancro e os resultados de saúde mental, respiratória, cardiovascular, gastrointestinal e metabólica”.

Helena Real recupera ainda dados do mais recente Inquérito Alimentar Nacional para lembrar que as crianças acabam por ser grupos em que o consumo de fruta e produtos agrícolas está abaixo daquilo que é recomendado.

Mais: os portugueses não consomem tantas leguminosas como seria esperado e “não estão a dar valor a este alimento, que acaba por ser uma fonte de proteína bastante considerável e um alimento muito económico”, diz Helena Real. Por isto, o plano privilegiou as leguminosas em termos de consumo.

As políticas públicas e a literacia alimentar

“Nós desperdiçamos até mais de um terço dos alimentos que se produzem. Se evitarmos este desperdício, estamos a poupar muitos alimentos e os recursos que foram utilizados para a sua produção”, conclui Tiago Luís, da WWF.

“Faltam políticas públicas que no fundo incentivem a literacia alimentar, para dar mais informação ao consumidor, permitindo que faça então melhores escolhas, e incentivos à produção sustentável em detrimento da insustentável, contrariamente ao que actualmente acontece”, reforça.

“Nós temos uma Política Agrícola Comum (PAC) que apoia essencialmente a produção intensiva a que está associada a maiores impactos. Há que reverter um pouco essas políticas a passar a apoiar mais modos de produção sustentável”, defende o coordenador de alimentação da WWF, que considera que os consumidores têm ainda dificuldades em aceder a alimentos sustentáveis. Estes tendem a ser “mais caros do que deveriam, o que tem que ver mais uma vez com as políticas de incentivo à produção”.

Tiago Luís reforça um dado curioso: “cerca de 40% da área habitável é utilizada para a produção alimentar e desses 40%, 84% estão dedicados à produção de produtos de origem animal”. E, na prática, “esses 84% da área que é utilizada para a produção de produtos de origem animal fornecem-nos apenas 37% da nossa proteína e 18% das nossas calorias”, o que pode querer dizer que a nossa alimentação é ineficiente “porque não estamos a ir buscar as calorias e as proteínas onde estão mais presentes que é nos alimentos de origem vegetal”.

Texto editado por Andrea Cunha Freitas

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