Mito: comer carne não tem impacto na crise climática

Da destruição de habitats ao simples arroto de uma vaca, a criação de animais para produzir carne, leite e ovos representa 15% da pegada carbónica global.

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A produção de carne emite cerca de 7,1 giga toneladas de CO2 por ano Szabó Viktor/Pexels

Quando um presidente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) disse pela primeira vez que reduzir o consumo de carne podia contribuir para o combate ao aquecimento global, este foi considerado o conselho mais controverso alguma vez dado pela entidade. Em declarações ao The Observer em 2008, Rajenda Pachauri sugeria que um estilo de vida mais consciente podia começar por ter um dia sem carne por semana.

Mais de uma década e várias campanhas "Segundas Sem Carne" depois, a ideia já não é nova, ainda que a proteína animal continue a ser parte integrante de milhares de pratos. Segundo apurado pelo Instituto Nacional de Estatística, em 2021, cada português consumiu, em média, quase 116kg de carne, maioritariamente de porco e aves.

Mas, afinal, porque é que Pachauri já destacava na altura a importância de reduzir o consumo de carne? Não, não era por ser, ele próprio, vegetariano. Vejamos os factos: estimativas da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) mostram que as emissões originárias da pecuária representam quase 15% da pegada carbónica global.

São 7,1 gigatoneladas de dióxido de carbono equivalente que vão parar à atmosfera todos os anos a partir de uma única fonte, 65% das quais atribuídas exclusivamente à criação de gado bovino para extrair carne e leite.

Em termos de emissões, a carne de vaca tem uma pegada carbónica de quase 300 quilogramas de carbono equivalente por quilo de proteína produzido. Seguem-se os ruminantes de porte mais pequeno (como cabras ou ovelhas), cujo quilo de carne comestível pode emitir 165 quilogramas de gases com efeito de estufa num ano.

Já o leite de vaca, o frango, os ovos e a carne de porco têm uma pegada ligeiramente menor – mas ainda relevante –, pouco abaixo dos 100 quilogramas de CO2 equivalente.

Dos arrotos de vaca à desflorestação

Os números não enganam: dizer que a produção e o consumo de carne não têm qualquer efeito no clima é mito. Se, por um lado, o impacto da produção de toneladas de ração para os animais é transversal a todo o sector da pecuária, por outro, cada pedaço de carne tem as suas características.

Por exemplo, a grande pegada carbónica atribuída à carne de ruminantes de grande e pequeno porte – nomeadamente, à carne de vaca – está muito associada às emissões do processo digestivo dos próprios animais, provenientes de arrotos ou fezes.

Já nas cadeias de produção de carne de porco, os maiores problemas ambientais estão ligados ao armazenamento de resíduos orgânicos dos animais que, ao apodrecerem, também produzem metano. Aliás, uma boa parte dos gases com efeito de estufa emitidos pela pecuária – 44%, segundo a FAO – diz respeito ao metano. O restante está dividido entre o óxido nitroso e o dióxido de carbono.

O impacto ambiental da produção de carne não fica por aqui, pelo que um quarto da água doce do mundo é usado para o efeito, maioritariamente na produção de ração. A agro-pecuária é também um dos maiores incentivos para a desflorestação e destruição de habitats.

A verdade é que se podia dizer que comparar a pegada carbónica de produtos de origem animal com a dos de origem vegetal é errado porque os primeiros têm mais nutrientes por unidade. Contudo, quando investigadores fizeram uma comparação das emissões por gramas de proteína que chegariam ao corpo humano, a conclusão foi a mesma: a produção de carne tem, indubitavelmente, maior impacto ambiental.

Países desenvolvidos devem reduzir o consumo

Se o consumo de carne tem, sim, impacto na crise climática, como solucionar o problema? Mitigar o aquecimento global passa por criar uma utopia em que toda a população global é vegetariana? Na verdade, não – e isso seria extremamente complexo.

Os autores de um estudo publicado na revista Annual Review of Resource Economics em 2022 alertam que, para além da sua componente cultural, a carne tem um papel importante na nutrição de milhares de pessoas, principalmente nos países em desenvolvimento, onde o acesso a outras alternativas é dificultado pelo contexto, dizem os cientistas.

Por exemplo, uma investigação em pequenas quintas de vários países africanos provou que a criação de gado está associada a uma melhor nutrição das crianças e adolescentes. Adicionalmente, em locais onde determinados alimentos são de difícil produção e acesso – denominados por desertos alimentares –, ou onde frutas e legumes variam muito de preço dependendo da estação do ano, produtos de origem animal podem ser as alternativas mais acessíveis.

Pelo contrário, nos países desenvolvidos, que são os principais responsáveis pela pegada ecológica global, a redução do consumo de carne é altamente recomendada pelos especialistas. É também cada vez mais fácil, com conceitos como o “flexitarianismo” (que não supõe a remoção total de produtos de origem animal) a ganhar terreno e as alternativas vegetais a ficar cada vez mais acessíveis.

E, apesar de o consumo de carne em Portugal ser ainda maior do que o recomendado pelos nutricionistas, os resultados do III Grande Inquérito sobre Sustentabilidade mostram alguma mudança, com uma ligeira descida no número de refeições com carne consumidas pelos portugueses.

Quando a carne está efectivamente no prato, a sua origem também importa, pelo que dados compilados pela plataforma Our World In Data provam que produtos animais de origem local e sustentável têm menos impacto do que a sua contraparte. Ainda assim, os mesmos números mostram que o transporte é responsável por uma percentagem muito pequena das emissões – no caso da carne de vaca, menos de 1%.

E mais: 100 gramas de bife “amigo do ambiente” têm uma pegada maior do que a mesma medida de ervilhas dos produtores com maior impacto ambiental. Logo, a sugestão de Rajendra Pachauri não deveria ser assim tão controversa.

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