Um romance como uma sala de exposições

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Olivier Rolin escreveu a história de Eugène Pertuiset, caçador de leões e traficante de armas, um tipo que não era nada o seu género. Mas também não era o género que agradasse a Manet e, no entanto, o pintor fez-lhe o retrato. Do cruzamento destas vidas nasce "Um Caçador de Leões"

Quando Olivier Rolin esteve em Lisboa no Verão acabara de chegar do Azerbaijão. Foi lá por uma razão especial: quis enfrentar a morte.

"Se quiser conto-lhe a história. Quando escrevi o livro ‘Suíte no Hotel Crystal' [ed. Asa], que se passa em quartos de hotel, o autor, que se chama Olivier Rolin, supostamente morre em 2009, no Azerbaijão, no quarto 1123 do hotel Abseron, em Bacu. E este ano estamos em 2009. Muitas pessoas me disseram para não ir ao Azerbaijão. ‘Se fores convidado evita ir', diziam-me. Não liguei e quis ir."

Foi ao Azerbaijão, em 2009. E sobreviveu. Passou ali um mês, tirou notas e agora tenta escrever um livro que não é um romance, é de um género difícil de definir, entre o diário de viagem e o literário. "Será um diário de um tipo que está em Bacu à espera da morte", diz o escritor francês, 62 anos, que continua a navegar no seu barco, "para sentir o vento", e continua a escrever na sua casa na Bretanha.

Muitos dos seus livros acontecem por causa de viagens. Foi também o caso de "Um Caçador de Leões", que acaba de ser publicado na Sextante. Há 27 anos Rolin ainda era jornalista, estava em Punta Arenas, no Chile, entrou numa livraria e comprou um livro sobre as explorações do Grande Sul. Chamava-se "Pequena História Austral" e aí ficou a saber que um francês chamado Pertuiset tinha levado até à Terra do Fogo, em 1873, uma expedição rocambolesca. Nesse livro havia a imagem desse homem, dizia-se que era um traficante de armas. Muitos anos depois, Rolin foi ao Brasil participar no Festival Literário de Paraty e passou por São Paulo onde, no Museu de Arte criado por Assis Chateaubriand, viu o quadro de Manet "O Caçador de Leões", onde o traficante de armas Pertuiset aparece representado. Tem uma arma apontada a um leão morto, estendido no chão, com um buraco no olho esquerdo onde o sangue já escurece.

Foi por causa do imenso tempo que passou entre a primeira vez que soube da existência de Pertuiset e a segunda vez que ele se atravessou na sua vida, que Rolin teve vontade de escrever sobre a personagem.

"Se há 27 anos, quando soube da sua existência no pequeno livro comprado em Punta Arenas, eu tivesse sabido que existia também este quadro de Édouard Manet, isso divertir-me-ia mas não me levaria a escrever. O que fez com que me decidisse a escrever foi tê-lo encontrado quando eu já era uma outra pessoa."

Anotar como um pintor

Na primeira vez que soube desta história Rolin ainda não tinha escrito qualquer livro, era um jovem, jornalista. "Era eu, mas completamente diferente." E depois, vinte cinco anos passam, "são os anos em que escrevo, passei a ser um escritor e reencontro-o uma vez mais. Foi por isso, como digo nas páginas finais do romance, foi o tempo, foi por bastante tempo ter passado entre as duas aparições que quis escrever sobre ele."

Passou então seis, oito meses a documentar-se, a ir ao Peru, ao Chile, à Terra do Fogo, às Bibliotecas Nacionais de Lima e de Santiago para ler os jornais da época. "Tomo sempre muitas notas e fi-lo sobre as coisas que li nas bibliotecas e vi nos lugares. Comecei a escrever mas não o fiz como queria. A minha ideia no início era fazer um livro como se fosse a sala de exposições de um museu e que cada capítulo fosse um quadro. No fundo queria ter uma cena por capítulo: como num quadro, uma só coisa mostrada, uma cena, um grupo. Queria fazer uns cem quadros mas depois, quando comecei a escrever, não tomou essa forma. Os capítulos ficaram mais clássicos."

Mas ficou algo dessa ideia. Há em "Um Caçador de Leões" algo de muito visual. "Acho que nos meus livros sou sempre visual, muito atento às cores, aos desenhos, à forma das coisas. Praticamente não há diálogos. O que me interessa não são as palavras trocadas é mais a aparência visual das coisas. Neste livro nota-se ainda mais. Quando vou a qualquer sítio, ao Peru, à Terra do Fogo, vou com o meu caderno de notas e o que tento fazer é anotar como se fosse um pintor, a cor do céu, da terra. Neste livro queria que a cada passo pudéssemos ver as coisas, que fosse uma escrita que libertasse as imagens."

É tudo verdade

Apesar disso escreve "Um Caçador de Leões" de forma sequencial, sem dificuldades, sem hesitar muito. "Instintivamente, na enorme quantidade de documentos que recolhi, sabia o que me interessava, que histórias queria contar e as que não me interessavam."

Neste livro por onde passa a história de Édouard Manet (que morre com grangena aos 51 anos - 1832/1883) e do seu admirador e modelo ocasional, Eugène Pertuiset (aventureiro e caçador de leões), acontecem muitas coisas ao mesmo tempo e, por vezes, até em tempos diferentes. Lê-se como um romance de aventuras. Rolin confessa que queria fazer "alguma coisa que evocasse" um romance de aventuras mas que não o fosse. Na verdade, queria que fosse um romance sobre a arte (já que Manet era a outra personagem) e que também existisse um lado autobiográfico. "Um lado de memória, de diário pessoal porque o narrador sou eu."

O que nos leva a perguntar-lhe se todas as histórias são verdadeiras. "Tudo o que se diz sobre o narrador é verdadeiro. Em quase todos os livros incluo-me de maneira dissimulada. Aqui não foi isso que aconteceu: é tudo verdade."

"Tudo aquilo que digo sobre Manet também não é inventado, quando falamos de um grande artista não temos o direito de o deformar. Por isso não inventei nada sobre ele, a não ser, de vez em quando, algum pensamento que tenha tido ou um encontro que nunca tenha acontecido. De resto todos os quadros que refiro foram pintados por ele."

Quanto a Eugène Pertuiset, Rolin conhecia a sua vida, ele realmente traficou armas no Peru. No início pensou mesmo que poderia ter tido uma ligação com Rimbaud. Aparentemente não se terão conhecido. "São completamente opostos, fisicamente, intelectualmente. Não se conheceram. Mas encontrei uma carta que Rimbaud escreveu quando estava na Abissínia onde pede a alguém uma determinada arma, uma carabina, com o tipo de balas explosivas que Pertuiset inventou. Aparentemente não se terão conhecido mas Rimbaud sabia da existência dessa arma."

"Um Caçador de Leões" é um retrato de uma época mas ao mesmo tempo Rolin não queria que fosse um romance histórico porque não se interessa pelo género. "Tentei não dizer coisas inexactas sobre a época, o fim do século XIX, mas não quis transcrever a época." Os episódios históricos franceses que descreve tiveram todos de alguma maneira importância na vida de Manet - "e outros tiveram importância para mim, como por exemplo a Comuna de Paris [uma experiência de governo operário,. em 1871]. Faz parte da minha cultura histórica, quando eu era jovem, de esquerda, no Maio de 68, acreditávamos que íamos ser os herdeiros da Comuna. É uma escolha ditada pela vida de Manet e ditada pela minha cultura. Quanto aos episódios que se passam na América Latina, são aqueles em que Pertuiset esteve envolvido. Só coloquei no livro um episódio de uma revolução no Peru porque achei pitoresca mas não se passa naquela altura."

Tudo é verdade, portanto, mesmo se alguns pormenores possam ter sido inventados. Por exemplo: o final da expedição que Pertuiset faz à Terra do Fogo não se passou como Rolin conta. "Correu mal, mas não de maneira tão ridícula."

O escritor não sabe como é que a personagem morreu. "No princípio queria saber como é que Pertuiset tinha morrido, a seguir achei que devia inventar essa morte e depois pareceu-me mais divertido colocar várias hipóteses ridículas. A última hipótese é que ele seria eterno, porque a vulgaridade é eterna. Pareceu-me mais divertido."

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