Queremos que fiquem atrás das grades ou com pulseira em casa?

Substituição de penas de prisão efectiva por permanência em casa com pulseira electrónica, em estudo no Ministério da Justiça, divide especialistas.

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O presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, franze o nariz a um regime que “cheire a impunidade” ADRIANO MIRANDA

Numa altura em que a aplicação de pulseiras electrónicas continua a subir, o Ministério da Justiça prepara-se para alterar a lei no sentido de permitir que mais delinquentes possam cumprir em casa, com pulseira electrónica, as penas a que foram condenados. O assunto não é, porém, pacífico: se uns acham que há ainda margem para colocar mais arguidos em prisão domiciliária, libertando espaço nas cadeias, outros entendem que cumprir uma pena nesta modalidade pode “cheirar a impunidade”.

No final de Setembro passado eram já mais de mil as pessoas que se encontravam em casa com pulseira. Mas a sua grande maioria não tinha ainda sido julgada: estavam em prisão preventiva, embora fora da cadeia. Só 71 se encontravam com pulseira ao abrigo daquilo a que a lei chama pena de prisão em regime de permanência na habitação, isto é, a cumprir pena. Uma possibilidade que neste momento só existe para condenações inferiores a um ano, ou a dois, em casos excepcionais.

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Um grupo de trabalho criado no seio do Ministério da Justiça vai apresentar, até ao final do ano, propostas de alteração ao Código Penal para maximizar o uso da pulseira no caso das chamadas bagatelas penais – a pequena criminalidade que a sociedade não considera perigosa.

Neste momento, há quem vá passar apenas o fim-de-semana à cadeia, voltando à sua vida normal, emprego incluído, nos restantes dias. É a chamada prisão por dias livres, aplicada, por exemplo, a quem foi apanhado a conduzir sob o efeito do álcool múltiplas vezes – e que a tutela entende ter fracos efeitos em matéria de prevenção de reincidência criminal. Mas quão longe se pode ir nas mudanças?

O presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, franze o nariz a um regime que “cheire a impunidade”. “Ficar em casa a cumprir pena mas poder sair todos os dias para ir trabalhar? Só ir a casa para dormir? Isso não é pena nenhuma”, observa, muito embora admita que existe margem para aumentar o número de pessoas presas em casa. “Mas seria devastador para a percepção que a sociedade tem do sistema ver alguém cumprir a sua pena na sua mansão, à beira da piscina”, avisa. O que fazer, então?

Para além de limitar a estadia forçada em casa aos criminosos com penas mais leves, o sindicalista pensa que também poderá ser necessário limitar o tipo de crimes abrangidos por esta possibilidade. A presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, Manuela Paupério, é ainda mais taxativa: diz que este tipo de medidas anulam o efeito dissuasor das penas. “O regime de permanência na habitação tem a vantagem de não ficar tão pesado ao erário público”, reconhece. “Mas o bom senso diz-nos que não devemos pôr um traficante de droga em prisão domiciliária”, uma vez que é lá, com frequência, que ele desenvolve o seu negócio, assinala.

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Continuar a estudar, ou a trabalhar

Para a juíza, quem prevarica “tem de sentir a pena como uma advertência efectiva, para não voltar a reincidir”. E quem conduz alcoolizado dificilmente vai parar à cadeia à primeira ou segunda vez que é apanhado, faz notar. Para isso suceder é porque já o fez muitas vezes, pondo repetidamente a vida dos outros em risco. Se a sua punição se ficar, por regra, pela prisão domiciliária, “andamos aqui a condenar as pessoas para nada – e os crimes continuam a ser cometidos”. Mas se quem prevarica “souber o que é estar preso”, então talvez altere o seu comportamento.

Opinião diametralmente oposta tem o advogado Carlos Pinto de Abreu, para quem este mecanismo devia ser usado não apenas para penas curtas, mas para sentenças até pelo menos aos cinco anos de cadeia, permitindo às pessoas não perder o emprego ou continuar a estudar, se for caso disso. O penalista vaticina que o encarceramento, como sanção-padrão e pena principal, há-de um dia cair em desuso, por ser fruto da incapacidade de superação dos Estados na sua relação com as pessoas. E defende que a mudança legislativa não deve servir para resolver o problema conjuntural de sobrelotação dos estabelecimentos prisionais, mas sim para restabelecer o respeito pela dignidade humana, ressocializando quem cometeu um crime. Se for aplicada de forma liberal, a pulseira permite “não perder o emprego, nem a custódia dos filhos”, exemplifica.

Docente da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, André Lamas Leite tratou deste tema na sua tese de doutoramento e acha uma excelente ideia que a prisão por dias livres possa ser substituída pela permanência em casa, com possibilidade de sair para trabalhar. Devia ser usada “em condenações até dois ou excepcionalmente três anos”, equaciona. A nível técnico, implicaria porém melhorar o sistema de localização das pessoas que estão a ser vigiadas, o que pode pôr em causa direitos fundamentais.

O controle do sistema de vigilância electrónica não é, aliás, de somenos. No Verão passado a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais alertou para o reduzido número de técnicos encarregues da tarefa. E embora depois disso já tenham sido recrutados mais alguns trabalhadores, o seu número é ainda considerado muito insuficiente pelos sindicalistas – o que significa um risco acrescido.

Questionado pelo PÚBLICO sobre como será possível estender a utilização de pulseiras electrónicas neste cenário, o Ministério da Justiça respondeu que "estará atento à eventual necessidade de novo reforço [de pessoal], caso o recurso a este sistema aumente".

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