Provas de aferição: para uma reflexão sobre o acto de ensinar

Se os resultados são preocupantes é porque os limites do mundo dos nossos jovens são os limites da sua linguagem.

Na edição do PÚBLICO, do passado dia 2, a páginas 8, podíamos ler: “No 8.º ano são muitos os alunos que erram na gramática e na aritmética”. Aderiram a esta prova 56% das escolas e para o próximo ano estas mesmas provas serão obrigatórias. Segundo a notícia, o que se percebe é que, à medida que os alunos progridem no percurso escolar, vão somando dificuldades quer a Português, quer a Matemática. Tal como no 12.º ano, também noutros níveis de ensino é óbvia a ineficácia deste tipo de avaliações. Em vez de motivar, sancionam; em vez de promover a cultura e educar o gosto, formatam e artificializam o ensino, matando o sentido que a escola deveria fazer na vida das crianças e adolescentes.

Os resultados das provas de aferição – e deter-me-ei apenas na prova do 8.º ano, uma vez que é sintomático que a meio do processo de aquisição de conhecimentos em língua materna se atinjam percentagens negativas tão altas – não se devem a nenhuma das causas que Edviges Ferreira, Presidente da Associação de Professores de Português, aponta. Primeiro: para quem viu a prova do 8º ano pode perguntar-se se aquele tipo de testagens, com inúmeras perguntas de escolha múltipla, aferem competências de leitura e escrita. Até à sexta página (a prova tem oito) o aluno é convidado a jogar a uma espécie de totoloto, respondendo a perguntas que, em rigor, são profundamente desinteressantes e divorciadas do espírito das metas curriculares. Este não é um aspecto despiciendo, justamente porque estes resultados (e não só no 8º ano, como facilmente se deduz) dão conta de uma das causas que melhor explicam o insucesso nesta disciplina: a visão meramente instrumental das práticas pedagógicas que orientam os metodólogos do Ministério da Educação. Comprometendo qualquer esforço nas políticas que visem libertar o sistema educativo da ideologia tecnocrata que padroniza as tão propaladas “estratégias de avaliação e aferição de competências”, estas provas são o espelho do excesso formalista numa área que não pode ser avaliada como as ciências exactas. Estudar o texto literário e escrever cientificamente sobre a literariedade exigem o rigor proveniente do domínio gramatical, inviável sem o concurso de outras áreas do saber, auxiliares da Literatura. Por outro lado, há questões de desigualdade social, de pobreza dos agregados familiares, facto que bloqueia, logo à entrada do 1.º ciclo, a adesão natural dos alunos às aprendizagens. Junte-se a essa realidade a ideologia do entretenimento televisivo e o fetichismo da técnica e será mais fácil compreender fenómenos disruptivos e a dificuldade dos alunos em saber ler e escrever.

As provas em presença são o espelho do esgotamento de uma didáctica que convida à reprodução de frases feitas e de novos modos de impressionismo. E tal nada tem a ver com as metas curriculares e o espartilho a que se refere Edviges, porquanto até se acusem as metas de terem um programa extenso. É que, no horizonte de expectativas das metas curriculares, está a boa-fé de quem defende (como eu defendo, apoiando, sem reservas, a equipa das metas curriculares) que é pelo contacto do texto literário, com a prática da escrita e da leitura que podemos dar aos nossos alunos uma cabal formação visando a frequência no ensino superior.

Ora, as Metas pretendem dar aos alunos o que lhes foi roubado: a leitura do texto literário a par de textos informativos/críticos que esclareçam questões ideológicas, contextuais, estéticas, com vista a um melhor entendimento desses textos. Fruir a Literatura, educar a sensibilidade e a inteligência, eis o que, desde o 1.º Ciclo se pede a quem ensina.

Bastaria ver o caderno de apoio do 8.º ano relativo à poesia – e onde encontramos composições de diversos autores, de Sá de Miranda e Camões a Nicolau Tolentino, Bocage, a Antero ou Cesário e Nobre, sem esquecer composições de Petrarca e Shakespeare – para comprovarmos que, seja no 3º ciclo ou no Secundário, o que as metas perseguem é o ideal cultural que a própria Escola, no seu todo, sempre deveria ter defendido. As aulas de Português não são o lugar da avaliação permanente. Não podem ser momentos onde reina a repetição, a vacuidade, o acriticismo, seja por extensão dos programas, seja por incompetência de quem lecciona. O que está, portanto, em causa é a formação de professores, a qual é deficitária no que respeita à bibliografia de referência que deveria orientar as práticas de leccionação. Preferiu-se a esotérica pedagogia das ciências da educação, mas para um professor de português, de que lhe vale saber muito de apresentação de powerpoint se, ensinando a poesia de Antero, desconhece o que sobre o poeta escreveu Joaquim de Carvalho ou, sobre Bocage, não leu ensaios de Óscar Lopes, David Mourão-Ferreira, Daniel Pires ou Maria Antónia Oliveira? De que valem mil formações sobre questões de didáctica se, no limite, se detesta a poesia (a Literatura) ou se tem dela uma visão infantilmente romântica, pejada de ideias-feitas sobre o que é e como é a linguagem poética?

Não se percebe como Edviges pode pensar que as metas, por defenderem o património literário português, propondo o ensino de diversos diversos géneros, os quais até podem ser escolhidos por um professor competente, sem prejuízo da escolha de outras tipologias, espartilham quem dá aulas e quem as recebe. Justamente porque se quer que os alunos de todo o país ganhem mais familiaridade com esse património, cai pela base o falacioso argumento de que os programas “não se adequam aos alunos do século XXI” ou que estas provas são para alunos de Lisboa. Tivesse havido, desde 1996, um paradigma cultural a reger os programas e as práticas educativas, quem sabe a educação do gosto literário não nos parecesse, hoje, algo de tão excêntrico à própria acção de leccionar português. Não saberá Edviges que a Literatura, já pela diversidade cultural e simbólica das suas produções (poesia, teatro, romance), já pelo repertório diversificado de linguagens e de experiências estéticas é a melhor defesa contra o nosso tempo?

O século XXI, marcado pela alienação dos mais jovens relativamente a tudo quanto seja a alta cultura, época do terror generalizado, da ditadura da banalidade, do culto da superficialidade feliz, exige, mais do que nunca, que os professores – sobretudo os de Português – tenham um universo cultural alargado, que sejam críticos e desprezem esse pedagogês que arrasou com a tradição de ensino da língua ancorado na literatura e na cultura. A separação entre língua e literatura, ou melhor, o conflito entre linguístas e professores de literatura é que nos conduziu, nos últimos vinte anos, e com acentuada gravidade nos resultados e sucesso escolar dos alunos que frequentam a escola portuguesa desde 2000 até hoje, ao desinteresse dos alunos pelo Português. Ao abrigo de uma pretensa cientificidade nas avaliações, só se avaliou, não se ensinou nada de verdadeiramente útil: e a utilidade de se estudar Literatura prende-se com a capacidade de interpretação da realidade, dando a ver os possíveis discursos de que o mundo humano é feito. Se os resultados são preocupantes é porque os limites do mundo dos nossos jovens são os limites da sua linguagem.

A prova de aferição do 8.º ano não é mais que a reprodução acrítica do que os alunos terão aprendido (?) quanto a tempos e modos verbais, relação semântica entre palavras, morfologia e funções sintácticas. Não há, verdadeiramente, compreensão das razões que justificam o estudo da gramática, hoje, em português. Não há por três razões: 1.ª) entre os textos literários e o que eles agenciam (ideias, valores, símbolos, mitos, enredos, imagens) e as perguntas que sobre esses textos se fazem, raramente motivam o aluno a que este relacione, integre num contexto histórico-social, mergulhe, enfim, na sua energia vital e traga à superfície, com inteligência, por meio da escrita, a sua visão de mundo; 2.ª) as provas de aferição estão pensadas para a mediania nacional, daí as perguntas perfeitamente inócuas (“O navio está para leme, assim como peixe está para” e davam-se às escolha quatro alíneas: “pescador”, “anzol”, “atum”, “escamas”). Não vislumbro a pertinência desta e de outras questões gramaticais idênticas; 3.ª) Quanto ao último grupo, de avaliação da expressão escrita, diga-se que é de uma inanidade atroz o exercício proposto: o aluno teria de imaginar uma “personagem aventureira”, a qual, chegando a um “país distante” teria de ajudar os seus habitantes a enfrentar “um grande problema”. Pedia-se a descrição de um espaço e um título adequado. O que resultará daqui? Movidos pelo desinteresse e reconhecendo a infantilidade deste exercício, os alunos produzirão textos que são como pedradas atiradas à cara de quem pensa e faz estas provas. Onde está aqui a motivação do simbólico e do alusivo? Numa prova em que o tema da viagem estava subjacente aos textos e itens convocados, não se poderia ter proposto outro tipo de redacção? Se queremos que escrevam cientificamente, como propor exercícios deste teor?

Que se defenda, portanto, a Literatura e o ensaio especializado. Os modelos de argumentação e elevação de pensamento estão nos textos críticos dos nossos melhores ensaístas, poetas, artistas. Que se aposte em acções de formação com formadores conhecedores e amantes da cultura literária. Talvez fosse um começo. Com a enxurrada de questões inócuas de gramática e exercícios de audição que infantilizam e tornam artificial o próprio acto de ouvir (não percebem que os adolescentes acham ridículo semelhantes práticas de ensino?), e de escrever, este tipo de provas fere de morte o ensino do português. Fere, não afere.

Professor e crítico literário

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