Notas dos e nos dias da devastação

É urgente que o Primeiro-Ministro e a Ministra da Administração Interna anunciem categoricamente a intenção de, no primeiro momento possível, levar a cabo a indagação e a atribuição das responsabilidades a que houver lugar.

1. Para uma catástrofe humana, também dita natural, como a que assolou as gentes de Pedrógão Grande e dos seus entornos, não há palavras, não há gritos, não há lágrimas. Só há gestos. E há silêncios, silêncios de enlevo. Um afago diz mais do que um dicionário de palavras, um refúgio vale mais do que tanques de lágrimas. Ante a desolação e a desesperança, resta saber nada dizer; nada dizer é contemplar, contemplar o outro. O outro que foi, o outro que é e o outro que tem de continuar a ser. E nesse silêncio longo e persistente, que acabará por ir muito para além da memória arquivável, mora a fraternidade e a humanidade. Do sangue, da vizinhança, de todo um povo, da condição humana. Obrigado a todos os que, esquecendo as suas vidas e até a sua vida, põem a nossa em primeiro lugar.

2. Diante da tragédia assomam as interrogações fundamentais. As que vêm do divino e do sobrenatural; as que procedem do destino e da inevitabilidade estatística; as que promanam da mãe natureza e da sua ditadura; as que provêm da cultura e do planeamento estrutural; as que emanam da acção e da omissão contingente e conjuntural. No meio dos gemidos do silêncio, uns recorrem a Deus e aos seus intercessores, outros confiam no determinismo, muitos crêem no panteísmo natural, alguns entregam-se à falha colectiva, tantos professam na culpa que certos rostos estampam. Mas enquanto a tragédia não atinge o epílogo, todos os juízos estão e são suspensos. Sopram sotto voce, à espera que o risco e o perigo serenem.   

3. Antes de a terrível notícia ter irrompido, fazia tenções de aqui voltar ao tema da Agência Europeia do Medicamento. Havia e há matéria de tomo, merecedora de análise, de comentário e de denúncia. E em altura mais propícia, ao tema voltarei. Ouvindo o Presidente da República, na sua alocução oficial de Domingo à noite, dei-me conta, porém, de que, nas raízes profundas – que nunca, mas nunca, nos corolários e consequências – intercediam pontos de contacto. O Presidente lembrou – talvez no único juízo crítico que a este propósito emitiu – que os fogos atingiram as populações mais esquecidas, mais abandonadas, mais isoladas. No fundo, e pondo-se no patamar das causas estruturais, denunciou as iniquidades de um país centralizado e centralista. E, desta feita, numa dimensão que é decerto a mais funda e aguda de todas: o fosso entre o litoral e o interior. O envelhecimento e o esquecimento do interior não constitui apenas uma grave injustiça social e territorial. Congraça outrossim uma ferida aberta no projecto nacional, cujas consequências são muito mais nefastas e custosas do que na capital (e, mais latamente, em toda a faixa litoral) se pode supor ou cogitar. Há muitas razões, de toda a sorte e ordem, para, primeiro, minorar e, a prazo, corrigir esta injustiça territorial. Mas este evento trágico, seguramente transcendendo essa etiologia, põe a nu muitas das fragilidades humanas, sociais e infraestruturais que o pendor centralista favorece e propicia.

4. Todos os responsáveis políticos têm chamado a atenção para que este não é o tempo de apurar responsabilidades. Sejam elas responsabilidades colectivas nacionais, institucionais abstractas ou políticas e administrativas concretas e personalizadas. Perante a persistência e a iminência da ameaça, têm toda a razão. O tempo é de defender a vida e a integridade das populações e das forças de protecção civil, de proteger os bens e os haveres das famílias e das comunidades locais, de salvar a floresta na medida do possível. Dois pontos merecem, no entanto, reparo. Primeiro: não apurar de imediato responsabilidades não equivale a não as assumir. Ora, assumir responsabilidades é cuidar com todo o zelo e respeito das vítimas e dos afectados bem como de potenciais vítimas e afectados. Ainda ontem se ouviam lamentos de habitantes de pequenas povoações que, regressando a casas parcialmente destruídas ou simplesmente assaltadas, não tinham recebido um único contacto ou disponibilidade de apoio ou ajuda. Nesta fase, uma omissão deste calibre corresponde a uma não assunção da responsabilidade por banda do Estado e do Governo. Segundo, e para que conste, não apurar responsabilidades agora e no imediato não significa que não seja absolutamente necessário proceder a um apuramento rigoroso e integral de responsabilidades, aí incluindo a responsabilidade política, administrativa e operacional. Se se compreende perfeitamente que, diante do desenrolar da tragédia e da permanência de ameaças sérias, se ponha a ênfase no postergar do apuramento, já não se percebe cabalmente por que razão nenhuma dessas entidades assume que, em momento próximo e posterior, será efectuado um apuramento integral dos vários patamares de responsabilidade. É urgente que o Primeiro-Ministro e a Ministra da Administração Interna anunciem categoricamente a intenção de, no primeiro momento possível, levar a cabo a indagação e a atribuição das responsabilidades a que houver lugar. Esta repetição exaustiva de que não é ainda o momento oportuno não é suficiente; é necessário garantir sem reservas que o apuramento das responsabilidades de todo o tipo vai fazer-se na primeira oportunidade.

5. Rui Tavares escrevia ontem aqui que, no domínio da protecção civil, era necessário estabelecer uma força europeia. Já há muito que o escrevi e não posso estar mais de acordo. Como sempre sustentei e talvez diferentemente do que pode inferir-se desse texto, a criação de uma política de defesa comum e de uma guarda costeira não são propriamente concorrentes da criação dessa força europeia de protecção civil. Com efeito, e ao invés, o corpo europeu de protecção civil pode e deve ser, isso sim, o embrião de um corpo de defesa comum e até de uma guarda fronteiriça. É mais fácil começar por soldados da paz do que por soldados de guerra.  

 

SIM e NÃO

SIM. Sargento Paiva Benido. Membro da missão da União Europeia no Mali, aí morreu num ataque terrorista. A sua vida foi dada ao serviço da nossa segurança. Que o país lhe saiba prestar tributo e cuidar dos seus familiares.

SIM. Bombeiros portugueses. De que cêpa estas mulheres e estes homens são feitos? Dão tudo, mais do que tudo, por todos nós. Não há palavras que possam reconhecer e agradecer o seu altruísmo.

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