Ninguém se apercebeu de algo errado no lar de Reguengos?

Ministério Público acusou em Outubro a ex-directora do Lar Nossa Senhora de Fátima e a Santa Casa da Misericórdia por crimes de maus tratos supostamente cometidos entre 2008 e 2014.

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O lar fechou e as crianças que aí viviam foram transferidas para outros centros de acolhimento do país Guilherme Marques

O Ministério Público diz que na casa senhorial que acolhia o lar havia crianças e jovens que eram fechados na despensa e numa arrecadação, amarrados, algemados ou amordaçados. Descreve como frequentes os episódios de violência, ofensas, fugas e desobediência. E aponta o caso de uma criança que fugia da instituição acabando, por diversas vezes, a dormir na praça principal de Reguengos de Monsaraz onde pediria esmola. Porém, perto do lar Nossa Senhora de Fátima, não se encontra quem tenha notado algo de errado. Vizinhos a viver na mesma praceta do Lar Nossa Senhora de Fátima ouviam gritos mas dizem que eram “gritos de brincadeira, e não de quem estava a ser maltratado”.<_o3a_p>

Numa sexta-feira do final de Maio deste ano, essa praceta encheu-se de carrinhas e as mais de 30 crianças e jovens que ali viviam foram levados para outros centros de acolhimento no país. A forma repentina como partiram não deixou indiferentes os residentes desta zona da cidade alentejana.<_o3a_p>

O Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora acusou a directora do Lar Nossa Senhora de Fátima de três crimes de sequestro agravado, 11 de abuso sexual de dependente, sete de maus tratos e três de peculato. A Santa Casa da Misericórdia da cidade e o respectivo provedor, Manuel Galante, foram acusados por nove crimes de maus tratos e três de sequestro agravado, todos por omissão. Tal significa que o responsável teria conhecimento de alguns dos ilícitos que se passavam na instituição e nada terá feito para os impedir. O PÚBLICO tentou ouvir o responsável mas, estando o processo em curso, Manuel Galante não presta declarações.<_o3a_p>

Quatro elementos da equipa técnica do lar foram co-responsabilizados pelos maus tratos e pelos sequestros e duas funcionárias respondem por agressões às crianças. despacho de acusação data de 15 de Outubro deste ano. O inquérito foi iniciado em 2011 na sequência de uma participação feita pela Segurança Social e incidiu no período de 2008 a 2014. Até ao final da semana passada, nenhum dos arguidos tinha requerido a abertura da instrução. Terminado o prazo para o fazerem, muito em breve, o processo segue para a Comarca de Évora para julgamento. Entre os dez ofendidos referidos no despacho de acusação consultado pelo PÚBLICO, “alguns apresentaram pedidos de indemnização civil”, segundo o DIAP de Évora. <_o3a_p>

Um dos episódios descritos na acusação do Ministério Público refere-se a um rapaz de 15 anos que terá ficado trancado na despensa uma semana. Era, segundo a acusação, um jovem especialmente vulnerável, com limitações cognitivas, carências afectivas, instabilidade emocional, comportamento agressivo e ideias suicidas. Institucionalizado aos oito anos, seria um alvo fácil dos colegas que o agrediam ou ameaçavam com frequência.<_o3a_p>

Terá sido fechado na despensa depois de uma fuga do lar e de ter sido encontrado pela polícia junto à estação de Reguengos de Monsaraz. Durante uma semana terá dormido e comido na despensa. Sempre de pijama, saía apenas de manhã para tomar banho e, às vezes, durante o dia para ir à casa de banho, refere a acusação. Quando começou a sair da despensa, a directora terá dado ordem para que o jovem fosse algemado ou que uma das mãos fosse presa a móveis do lar.<_o3a_p>

Em Reguengos de Monsaraz, não há porém quem se lembre de ver jovens a deambular nas ruas, a pedir esmolas ou a dormir ao relento, como consta na acusação do Ministério Público, que descreve um outro caso de uma criança que, entre 2009, quanto tinha 14 anos, e 2012, teria passado várias noites ao relento “nos bancos da Praça de Reguengos de Monsaraz”.<_o3a_p>

Na casa colada ao lar e que partilha o mesmo muro a separar os dois pátios, uma vizinha diz que nunca ali viu ou ouviu nada de estranho. Os gritos que ouvia eram “gritos de brincadeira, e não de quem estava a ser maltratado”, garante.<_o3a_p>

Da casa onde mora do outro lado da praceta, João (nome fictício), consegue ver as janelas, que agora estão sempre fechadas, do antigo lar onde chegou a ir quatro ou cinco vezes, para visitar colegas da escola. Lembra-se dessas tardes, passadas com eles, a jogar à bola ou outros jogos. Não se recorda de alguma vez algum deles ter-se queixado. Castigos corporais? “Nunca falaram disso”, diz o rapaz de 11 anos. E quando os havia, “o castigo era lavar a loiça e a roupa dos outros”, conta. “Às vezes diziam que lhes chamavam ‘burros’.”<_o3a_p>

Além disso, não eram visíveis sinais de sofrimento ou maus tratos. A não ser, ressalva, nas últimas semanas depois da saída da directora: “O meu amigo só chorava, depois disso. Havia mais zangas e ninguém brincava naquela casa. O ambiente ficou triste. E eu deixei de lá ir.”<_o3a_p>

Ali perto, alguns jovens, amigos dos rapazes mais velhos da instituição, lembram-se dos rumores que circulavam sobre a relação que Vânia Pereira, psicóloga e directora do lar, manteria com um deles. O rapaz, que era menor de 18 anos na altura, sempre o negou. “Podem ser boatos falsos”, dizem dois rapazes que o conhecem, sentados num café perto da Escola Secundária.<_o3a_p>

A direcção do Agrupamento de Escolas de Reguengos de Monsaraz e a Comissão de Crianças e Jovens (CPCJ) da cidade dizem nunca ter detectado sinais que indiciassem a prática de crimes como aqueles que constam da acusação de 15 de Outubro.<_o3a_p>

“A direcção [da escola] não sabia de nada”, garante António Ribeiro, director do Agrupamento de Escolas de Reguengos de Monsaraz, frequentado pelas crianças e jovens do Lar Nossa Senhora de Fátima. Também a CPCJ do concelho diz não ter recebido qualquer queixa ou sinalização relativa a abusos, negligência ou maus tratos, embora tivesse contacto regular com alguns dos jovens que eram periodicamente entrevistados a sós, tendo em vista o acompanhamento dos seus processos de promoção e protecção. “A comissão nunca teve conhecimento de quaisquer factores que supostamente estão integrados neste processo-crime”, garante Marta Santos, presidente da CPCJ de Reguengos de Monsaraz.<_o3a_p>

Para as pessoas ouvidas pelo PÚBLICO, as notícias – das suspeitas, em Abril, e depois da acusação, em Outubro – foram uma surpresa e um choque. De maus tratos, dizem, “nunca” se ouviu falar. Vânia Pereira transmitia para fora uma imagem que era, por um lado, de grande segurança e competência e, por outro, de rigor e distância, embora parecendo ter dificuldade em manter regras de disciplina entre os jovens mais problemáticos. Ninguém se atreve a tomar posição invocando, antes de mais, o respeito pelo direito dos acusados à presunção da inocência.<_o3a_p>

Há quem se lembre especialmente do dia, em Abril deste ano, semanas antes do encerramento do lar, em que a praça se encheu não de carrinhas, mas de viaturas da GNR. A directora da instituição tinha sido constituída arguida por suspeita de maus tratos, de abuso sexual e de peculato. Ficara suspensa de funções e proibida de se aproximar das crianças e jovens da instituição. Nesse dia, foi levada ao local onde as autoridades policiais apreenderam computadores, telemóveis, tablets e vários documentos, entre os quais os livros de ocorrências do lar. <_o3a_p>

No Lar Nossa Senhora de Fátima, haveria episódios de instabilidade e de agressividade, que dificilmente seriam contidos. Haveria também dificuldades acrescidas por esta ser uma instituição que acolhia jovens com patologias diversas, algumas graves; e que juntava crianças de idades muito diferentes para não separar fratrias – dos três aos 18 anos, podendo os mais velhos requerer o prolongamento da medida de acolhimento até aos 21 anos. Os relatos são vagos mas pouco mais do que isto terá passado para a comunidade. <_o3a_p>

Laços de confiança
“Têm de existir laços de confiança para as crianças fazerem revelações de maus tratos ou abusos”, considera Paulo Macedo, jurista da instituição que a nível nacional analisa as sinalizações feitas nas CPCJ do país, lembrando que as crianças institucionalizadas estão, em muitos casos, fora da sua área de residência ou, pelo menos, longe do local onde antes puderam desenvolver relações mais próximas. “Tem de haver uma pessoa com quem as crianças se sintam à vontade, que elas conheçam bem” para poderem partilhar essa informação, diz o jurista. “Normalmente é com os professores que as crianças falam porque são as pessoas que estão com eles todos os dias. Ou os psicólogos”, acrescenta de forma genérica e sem querer comentar este caso em particular.

Vânia Pereira integrava desde Outubro de 2014 a comissão restrita da CPCJ de Reguengos de Monsaraz, cargo que, segundo a lei, deve ser ocupado por um representante de uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), de natureza institucional, como era o caso do lar que dirigia. Mas não fazia a gestão dos processos de crianças acolhidas na instituição.<_o3a_p>

Tal situação – em que a directora de uma instituição envolvendo crianças em risco exerce, ao mesmo tempo, funções na CPCJ – não significa que haja incompatibilidade nem era exclusiva de Reguengos de Monsaraz, defende a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR). “Não é anormal aparecer o director de um lar numa comissão”, diz Paulo Macedo, também secretário-executivo da CNPCJR. “A Santa Casa da Misericórdia [de Reguengos de Monsaraz], tendo a valência de acolhimento, tinha de estar representada. Isso resulta da aplicação da lei [de protecção de crianças e jovens em risco]. Não há incompatibilidade desde que a directora não faça a gestão de processos de crianças ou jovens da instituição que dirige.”<_o3a_p>

O lar, fundado em 1936, ainda como Patronato de Nossa Senhora de Fátima e que em 1980 passou a integrar a Santa Casa da Misericórdia, encerrou portas naquele final de Maio quando as carrinhas levaram as crianças. O acordo de cooperação entre a Santa Casa da Misericórdia de Reguengos de Monsaraz e o Centro Distrital de Évora da Segurança Social existia desde 1998 e previa visitas periódicas de acompanhamento e inspecções da Segurança Social.<_o3a_p>

O despacho de acusação cita um excerto do relatório de uma dessas inspecções, de Dezembro de 2012: “Não é possível garantir a segurança, mesmo a nível da integridade física das crianças mais pequenas, facto que ressalta dos livros de ocorrências.”<_o3a_p>

O PÚBLICO tentou saber se alguma medida foi tomada pelo Instituto da Segurança Social (ISS) para prevenir a situação e qual o tipo de acompanhamento feito pelos técnicos da Segurança Social, no âmbito das inspecções ou das visitas planeadas. Em resposta, o ISS diz que estando “o processo em curso, não é oportuno” prestar informações. Apenas confirma que “a investigação teve início com a participação do ISS ao Ministério Público na sequência de acção de fiscalização por si efectuada”.<_o3a_p>

O despacho de acusação faz referência, sem datas, a “agressões físicas e verbais, ameaças e insultos, entre utentes do lar [que] ocorriam com regularidade quase diária, sem que as arguidas, que integravam a equipa técnica, lhes pusessem termo ou tomassem qualquer medida para as fazer cessar”.<_o3a_p>

Enquanto autoridade policial com responsabilidade na área de Reguengos de Monsaraz, a GNR não esclareceu, até ao fecho desta edição, se alguma vez recebeu denúncias relativas a uma criança ou jovem desacompanhados e em risco, nas ruas da cidade, a horas em que deveriam estar na instituição.<_o3a_p>

Tal como a escola e a comissão de protecção, também a Fundação Calouste Gulbenkian, que através do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano acompanhava o lar de infância e juventude no âmbito de um projecto de intervenção coordenado cientificamente pelo psiquiatra Daniel Sampaio, não tinha da instituição e da sua directora a imagem reflectida no despacho de acusação.<_o3a_p>

Nas respostas enviadas, a Gulbenkian explica que a selecção do Lar Nossa Senhora de Fátima para este programa foi feita a partir do trabalho de equipas técnicas “com credibilidade” e com “trabalho reconhecido na comunidade”. Estava entre as quatro seleccionadas no país por terem “as propostas mais bem estruturadas com vista ao desenvolvimento de competências de autonomia para os jovens e capacitação das equipas técnicas e educativas”, acrescenta a nota.<_o3a_p>

E esclarece: “As visitas técnicas [no âmbito do projecto] realizadas não permitiram retirar conclusões sobre qualquer comportamento ilícito ou de natureza criminal. Caso tivessem sido detectados sinais ou indícios que suscitassem preocupação, estes seriam sempre reportados às entidades competentes e utilizando os canais adequados.”

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