As Olimpíadas da Medicina

O curso de Medicina sempre foi competitivo pelo perfil dos alunos que ingressam nas suas Faculdades, hoje em dia tornou-se aflitivo pelo ambiente de pressão devido ao futuro cada vez mais incerto. Deixemos o desporto olímpico e voltemos à essência que é o desporto escolar.

Este ano foram surgindo várias notícias que vaticinavam o número de médicos que ficariam sem hipóteses de escolherem uma vaga de formação específica. Tudo foi tratado como uma mera questão matemática: número de candidatos – número de vagas = candidatos sem vaga. Seriam cerca de 700.

Mas este tratamento aritmético de uma questão tão complexa não só origina interpretações que moldam a opinião pública de uma forma errada como é um desrespeito para com uma Ordem dos Médicos que tem tratado este problema de uma forma séria e sobretudo criteriosa.

Neste momento os candidatos consistem, na sua maioria, em: médicos que terminaram o curso de Medicina em Portugal (cerca de 1800 este ano), médicos que terminaram o curso de Medicina no estrangeiro, médicos internos que pretendem mudar de especialidade e, naturalmente, médicos que não obtiveram vaga nos concursos anteriores.

Assim, anualmente, temos vindo a aumentar o número de candidatos à custa dos finalistas das Faculdades de Medicina em Portugal e dos candidatos que não conseguem uma vaga em concursos prévios, apesar do aumento de capacidades formativas que se tem verificado nos mapas de vagas (tendo este ano atingido o máximo histórico de 1758).

Não podemos ocultar que alguns dos candidatos não escolhem uma vaga por decisão pessoal, quando no momento da seleção decidem não exercer o seu direito de escolha devido às opções disponíveis. Este é o reflexo da elevada competição que este processo de excesso de candidatos originou: médicos que preferem repetir o exame na legítima esperança de alcançar uma melhor posição na seriação, ficando um ano numa situação precária sem a certeza de melhoria no processo seguinte. O panorama é tão avassalador como os números indicam: este ano existiram seis candidatos com 100% e 235 acima dos 90%. Assim, ao longo do concurso muitos vão desistindo por opção, sendo o número final de candidatos sem hipótese de escolha muito inferior à simples análise aritmética da questão (este ano 370). Mas não deixa de ser uma situação preocupante!

Fazer a Prova Nacional de Seriação tornou-se uma competição olímpica. Claro que poderão dizer que esta competição é salutar, na medida em que selecionará os melhores e mais bem preparados para uma nova fase que é muito exigente. Mas será isso verdade? Será que um candidato que conseguiu atingir 80% de respostas corretas não tem elevados conhecimentos de Medicina? O que esta pressão de candidatos originou foi um sistema perverso em que o pretendido não é avaliar a preparação do futuro interno no exercício da Medicina mas sim a sua capacidade de memorizar, o que poderia ser feito com o Livro de Pantagruel, que também contém pormenores que podem ser diferenciadores.

Urgem medidas que normalizem novamente este processo. A nova Prova Nacional de Avaliação e Seriação, que finalmente irá avançar, poderá ser um passo importante na medida em que o raciocínio clínico é valorizado em detrimento da capacidade de memorização, a média do curso passará a ser ponderada na nota final (deixando de ser apenas um critério de desempate) e as valências avaliadas são aquelas que os alunos contactam ao longo do 6º ano.

Mas isso não chega enquanto não houver a coragem política para diminuir os numerus clausus. Nesta questão não estou apenas a falar do problema relacionado com a falta de capacidades formativas pós-graduadas. Atualmente as Faculdades de Medicina não conseguem manter um rácio aluno-tutor adequado a uma formação com qualidade nos anos clínicos, atingindo um rácio médio de 7,5.

Portanto, em todo este processo, está também em causa a qualidade de formação dos próprios alunos das Escolas Médicas nacionais e consequentemente a sua preparação para o exercício da Medicina.

O curso de Medicina sempre foi competitivo pelo perfil dos alunos que ingressam nas suas Faculdades, hoje em dia tornou-se aflitivo pelo ambiente de pressão devido ao futuro cada vez mais incerto. Deixemos o desporto olímpico e voltemos à essência que é o desporto escolar.

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