Sócrates e os jornalistas

Os canais de informação poderiam combinar com Sócrates o âmbito dos temas e das perguntas, mas deveriam dar conta disso ao grande público.

Desde o momento em que foi detido a 21 de Novembro de 2014, José Sócrates geriu com o maior cuidado todas as suas intervenções públicas. Após algumas declarações e entrevistas escritas, aceitou um longo e muito criticado frente-a-frente na TVI em Dezembro, e, após dois depoimentos a órgãos de comunicação social estrangeiros, regressou na semana passada com uma entrevista à Antena 1.

As suas entrevistas têm sido uma desilusão, não por causa da habilidade de Sócrates para desconversar, mas devido à grande quantidade de questões essenciais que ou não foram desenvolvidas ou não chegaram a ser colocadas. Da desconfiança no sistema bancário aos empréstimos da CGD, das numerosas pessoas que sustenta às compras maciças do seu próprio livro, inúmeras perguntas ficaram por fazer, e não é crível que tal tenha acontecido por esquecimento de dois jornalistas tão experientes quanto José Alberto Carvalho ou Maria Flor Pedroso. Terão ficado de fora por imposição de Sócrates, durante os longos processos negociais que antecederam as entrevistas.

Esses processos não são segredo. Nuno Saraiva, subdirector do DN, e Sérgio Figueiredo, director de informação da TVI, já deram conta deles nas páginas do Diário de Notícias. No final de Junho de 2015, Saraiva descreveu a sua visita à prisão de Évora da seguinte forma:  “Começamos por falar da entrevista. Há alguns detalhes para afinar. José Sócrates tira do bolso do blusão de fato de treino uma esferográfica e duas folhas de papel A4 onde estão impressas as perguntas. (...) Por mais que tentemos interrompê-lo, Sócrates não permite. Indigna-se com as perguntas ‘encomendadas’ pelo Ministério Público.”

Sérgio Figueiredo, em Dezembro de 2015, já com Sócrates em liberdade, também deu o seu testemunho: “A entrevista do ex-primeiro-ministro à TVI tem um antes, teve um durante e terá um depois. O ‘antes’ são semanas de conversa, dias de negociação, horas de argumentos trocados. José Sócrates já tinha desistido uma vez, há uns meses, recusou uma entrevista combinada quando ainda estava preso em Évora, por não concordar com as perguntas que a TVI lhe fazia. (...) Estive em sua casa para voltar à conversa. Uma, duas, por quatro vezes lá estive, sem assunto encerrado. Havia um processo semelhante com uma televisão concorrente. Com a qual, pelo que ia percebendo, José Sócrates tinha tudo mais adiantado: o modelo, os temas, a duração da entrevista.”

Embora Figueiredo garanta que “isto é algo normal, nas entrevistas mais sensíveis, aqui ou em qualquer parte do mundo”, a verdade é que estas negociações com Sócrates são um desafio para a comunicação social portuguesa. O ponto é este: uma sequência de entrevistas planeadas ao detalhe sem que o espectador, o ouvinte ou o leitor saibam o que ficou combinado deixar de fora é um logro. E um logro que levanta problemas deontológicos, na medida em que um jornalista, ao abdicar de abordar certos temas incómodos, está a autolimitar o seu direito de informar.

A solução para o problema não me parece que esteja num impedimento irrealista de negociações entre as partes, que como afirma Figueiredo irão sempre existir “nas entrevistas mais sensíveis”, mas na obrigatoriedade de declarar as suas limitações. Ou seja, os canais de informação poderiam combinar com Sócrates o âmbito dos temas e das perguntas, mas deveriam dar conta disso ao grande público. A transparência ficaria assegurada. E jornalismo e jornalistas ficariam bem melhor na fotografia.

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