O espírito partidário

Num debate quinzenal na Assembleia da República percebe-se o quão daninho pode ser o exacerbamento das paixões partidárias. Semedo revelou argúcia ao declarar-se o único candidato socialista à presidência da Câmara Municipal do Porto.

1.Em Fevereiro de 1950, sete anos decorridos após a morte da autora, a revista La Table Ronde publicou um texto de Simone Weil intitulado “Nota sobre a supressão geral dos partidos políticos”, o qual suscitou de imediato a reacção entusiástica de dois nomes tão marcantes da cultura e do pensamento franceses como foram André Breton e Alain. O pequeno ensaio constitui um dos mais violentos libelos acusatórios contra os partidos políticos redigido por alguém de inequívoca filiação democrática. Simone Weil atribui aos partidos três características essenciais que reputa de profundamente negativas. Com efeito, na sua óptica um partido político é uma máquina de fabricar uma paixão colectiva, uma organização construída de modo a exercer uma pressão colectiva sobre cada um dos seus membros e tem por única finalidade o seu próprio crescimento ilimitado. Este tipo de organização, exacerbando as paixões, desvalorizando a dimensão racional e desviando-se de qualquer preocupação com a verdade e com a justiça, estaria destinado a pôr em causa a noção de “vontade geral” de Rousseau, que para Weil constituía a fonte originária do seu próprio ideal republicano.

Há um outro aspecto a que a autora atribui especial importância: o espírito partidário assenta sempre numa apreciação binária e redutora das ideias e da realidade; ou se é a favor ou se é contra o que quer que seja. Ora, esta operação de tomar constantemente partido em relação a tudo e mais alguma coisa substitui-se e opõe-se à própria operação do pensamento.

A reflexão de Weil tem mais interesse pelas questões que coloca do que pelas soluções que engendra. Na verdade, a alternativa a um modelo caracterizado pela supremacia dos partidos consistiria numa forma de representação da vontade política assente na autonomia total do representante. Dificilmente uma solução deste cariz poderia ou poderá funcionar em sociedades amplas e complexas  ?  como já eram aliás as do imediato pós-guerra, altura em que este texto foi elaborado. Apesar disso, as reflexões de Simone Weil podem ser de grande utilidade, já que chamam a atenção para limitações, perigos e riscos inerentes ao mundo partidário que nunca devem ser esquecidos.

Basta assistir a um debate quinzenal na Assembleia da República para perceber o quão daninho pode ser o exacerbamento das paixões partidárias. A partir de certa altura os argumentos pouco contam, a retórica decai até ao nível do indecoroso, o sectarismo sobrepõe-se a qualquer tipo de preocupação crítica, o dogma esmaga o espírito de abertura à compreensão do outro, a palavra torna-se o veículo do ensimesmamento ideológico. É penoso observar a transmutação de grupos parlamentares em claques agressivas, como se uma lógica tribal sobrelevasse inteiramente a mais pequena vontade de discussão racional.

O grau de confrontação atingido entre os dois principais partidos políticos portugueses não serve os interesses últimos da nossa vida democrática. Projecta, aliás, uma influência nociva em toda a vida cívica nacional e tem, como é óbvio, um efeito devastador no interior destes partidos. Um ambiente desta natureza constitui o caldo de cultura mais favorável para a afirmação hegemónica das correntes mais extremistas de ambos os lados. É vê-los ululantes e desvairados ao lado dos respectivos líderes.

2. O Presidente da República tem toda a razão em pedir esclarecimentos à direcção da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa sobre o acto censório nesta instituição praticado em relação a uma conferência que aí deveria ter sido proferida por Jaime Nogueira Pinto. Só quem não conhece a história da extrema-esquerda europeia se poderá espantar com a atitude exibida por jovens apoiantes do Bloco de Esquerda neste lamentável episódio. Limitaram-se a agir com o mesmo grau de patética arrogância moral e intelectual que ao longo de muitas décadas caracterizou a intervenção dos grupúsculos de que são doutrinariamente herdeiros. Claro que esta discussão poderia ir ainda um pouco mais longe e avaliar até que ponto uma mistura frívola de marxismo tardio com o pensamento desconstrutivista de algumas correntes sociológicas e filosóficas não origina uma doxa particularmente medíocre e intolerante. Essa doxa tende a propagar-se com alguma facilidade em certos microclimas universitários. Para o que muito contribuem alguns mandarins que lá se encontram confortavelmente instalados. O que espantou neste processo foi a decisão da direcção da Faculdade, e por isso mesmo é bom que o Presidente da República suscite esse esclarecimento público.

3. Tal como há umas semanas saudei aqui as candidaturas apresentadas pelo Partido Comunista para a Câmara e Assembleia Municipal do Porto, não posso deixar de enaltecer as opções feitas pelo Bloco de Esquerda para os mesmíssimos órgãos autárquicos. João Semedo, que sendo médico tem a vantagem de permanecer imune a alguma sociologia de pacotilha, e João Teixeira Lopes, que sendo sociólogo tem o mérito de representar o melhor deste domínio do saber, são duas personalidades de inequívoca qualidade política. Semedo revelou toda a sua argúcia no próprio momento da apresentação ao declarar-se o único candidato socialista à presidência da Câmara Municipal do Porto. Não há dúvida que os partidos à esquerda do PS fizeram opções muito fortes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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