Ainda não fizeram as pazes, mas Ferro e a direita já não se malham tanto

Os limites nunca foram ultrapassados, mas num ano houve muita tensão entre a direita e o presidente da Assembleia da República. O futuro de Eduardo Ferro Rodrigues como segunda figura do Estado também depende do sucesso da solução de apoio parlamentar que sustenta o Governo.

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Ferro foi eleito há precisamente um ano, quebrando a tradição de o presidente do Parlamento ser do partido mais votado nfs nuno ferreira santos
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Fernando Negrão era o candidato apoiado pelo PSD e pelo CDS pe Pedro Elias - Colaborador
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Com Marcelo Rebelo de Sousa, no 25 de Abril Enric Vives-Rubio
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Ferro Rodrigues é membro do Conselho de Estado lm miguel manso
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Mais recentemente, na cerimónia de tomada de posse do novo presidente do CES, Correia de Campos lm miguel manso

Doze meses depois de uma eleição contestada, o navio comandado por Eduardo Ferro Rodrigues parece já navegar em águas mais calmas, ainda que a tempestade continue a rondar. As críticas de parcialidade vindas da direita, inconformada com a quebra da tradição de o presidente da Assembleia da República não emanar do partido mais votado, foram-se atenuando, e é o PSD a ver agora no socialista um “esforço” de equilíbrio.

O seu primeiro ano como presidente da Assembleia da República (PAR) não foi pacífico: Ferro Rodrigues entrou em conflito com a direita várias vezes, tendo no PSD as vozes mais críticas à sua actuação. Os casos foram-se sucedendo, da simples contagem de segundos dos tempos de intervenção dos deputados à linguagem permitida nas intervenções, passando pelos pedidos de defesa da honra, o braço-de-ferro sobre o objecto da comissão de inquérito à CGD ou o requerimento para a auditoria ao Banif, em que o PAR acabou por ganhar e fez o PSD recuar. A direita tem uma perspectiva de base: Ferro Rodrigues é parcial nas atitudes e nas decisões que toma.

Mas, seja porque o PSD já se conformou com o resultado das legislativas, ou porque o PAR se esforçou em moderar-se, é ponto assente entre os sociais-democratas que há uma nítida melhoria. Fernando Negrão, o candidato derrotado por Ferro (por 108 contra 120 votos), admite que “o começo foi mau, marcado por uma visão partidária do funcionamento do Parlamento, mas o presidente percebeu que não era a postura correcta e tem vindo nitidamente a corrigir isso. Há dias até o vimos subscrever as críticas do PSD contra o Governo sobre a falta de documentos do OE2017.”

O mais reticente é Luís Montenegro, que logo no anúncio da eleição, disse que a isenção e a imparcialidade inerentes ao exercício do cargo estavam “longe de ser garantidas”. Hoje, o líder da bancada social-democrata admite que em “algumas circunstâncias” tem havido “reincidências” no “olhar diferente [de Ferro] para as pretensões do PSD e do PS”. E melhorou? “Não vamos contribuir para agudizar essas situações; o que queremos é que elas não aconteçam.”

Dever de prova acrescido

Carlos Abreu Amorim foi dos mais críticos. Depois de “quebrar uma tradição de sempre no Parlamento, onde os costumes valem tanto como a lei”, o PAR tinha um “dever acrescido de provar a sua imparcialidade e isenção”. Porque “não era um presidente como os outros”, diz o social-democrata, dando a entender que Ferro tem menos legitimidade para o cargo que os antecessores. Mas o Verão terá sido bom conselheiro: desde Setembro, Amorim nota “um esforço do PAR para ter um registo mais acima das clivagens político-partidárias”, mais “equilibrado”. “Espero que no fim consiga estar ao nível dos antecessores”, deseja o deputado, realçando uma “certa bonomia e até algum humor” de Ferro.

Nas atitudes de “eu quero, posso e mando” do PAR que Amorim presenciou nas conferências de líderes, outro deputado do PSD prefere ver agora “eficiência”. Duarte Pacheco, secretário da mesa da Assembleia desde 1995, que acompanhou os antigos presidentes Almeida Santos, Mota Amaral, Jaime Gama e Assunção Esteves, admite alguma “mão de ferro” do socialista na forma de conduzir os trabalhos, seja na conferência de líderes ou no plenário. Porque tem “iniciativa, estuda os assuntos por antecipação, prepara-se” e corta as discussões (que com Assunção se prolongavam por horas, à procura de consensos) tomando ele a decisão. "Pragmatismo”, resume.

O presidente tem “bom sentido de humor, mesmo nos momentos mais tensos. Nota-se no seu tom de voz quando não gosta da forma como é questionado e chega a ficar incomodado”, conta Duarte Pacheco. Mas Ferro tende a desvalorizar. “Às vezes, depois de responder aos deputados que reclamaram, desliga o microfone e diz-me ‘esquecem-se que tive muita experiência em RGA [reuniões gerais de alunos, em finais dos anos 60, início de 70]’”, acrescenta o deputado.

Balanço “francamente positivo”

Ferro Rodrigues faz um balanço “fracamente positivo” deste ano, até porque tem de lidar com a “situação totalmente nova” do acordo parlamentar à esquerda. Ao PÚBLICO, prefere destacar a sua contribuição para as “excelentes relações institucionais com o Presidente da República, que à partida não pareciam poder ser tão fáceis e próximas”. Marcelo foi, até, o primeiro Presidente eleito a ser recebido na AR antes de tomar posse. Ferro admite que o “clima de tensão política tem diminuído” e que os deputados se podem agora concentrar em “prestigiar a democracia e tornar mais clara e transparente a actividade do Parlamento”.

Questionado sobre os seus desafios à frente do Parlamento, o presidente veste a farda estritamente institucional e responde com os do país: “Conseguir voltar a uma situação de investimento e crescimento económico com condições de sustentabilidade, não estando de joelhos perante as instituições internacionais, mas antes tendo com elas um diálogo positivo. É fundamental a unidade entre PAR, PR e Governo – é isso que vou tentar fazer”, responde, em passo estugado, em direcção ao plenário.

Uma unidade que não existiu no início do seu mandato: na tomada de posse, Ferro não resistiu a criticar a única figura do Estado acima de si. Cavaco Silva proibira na véspera BE e PCP de terem influência na formação do Governo e Ferro avisou que não havia deputados ou grupos parlamentares “de primeira e de segunda” nem “coligações aceitáveis e outras banidas”.

Duarte Pacheco tem outra análise: os desafios de Ferro são proporcionais à capacidade de António Costa para responder às exigências de cariz ideológico dos parceiros parlamentares quando se esgotarem as medidas de reposição de rendimentos que os uniram. “Se houver desentendimentos na geringonça, o PAR pode ser apanhado nessa turbulência”, prevê o atento secretário da mesa.

Foram muitos os pedidos de interpelação à mesa sobre a condução dos trabalhos durante os debates em plenário. A esquerda, prudentemente, deixa a direita cavar a trincheira em relação a Ferro e não se mete, nem mesmo para o defender, mas acompanha as discussões com sorrisos rasgados e apartes com os microfones desligados. O líder da bancada bloquista, Pedro Filipe Soares, diz que este ano “decorreu com normalidade, e até com mais tranquilidade que na legislatura anterior. Os direitos dos grupos parlamentares foram respeitados”. Momentos de maior tensão? “Ora, isso há sempre, mas são normais.”

Apesar da distensão na relação entre Ferro e a direita, a citação do Livro do Desassossego que usou na sua tomada de posse poderá, afinal, continuar a aplicar-se na AR e no país mais uns tempos: “Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem.”

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