Ímpar
“O que andámos p’ra aqui chegar”
Bem-estar, famílias e relações, moda, celebridades... Um mundo que não é fútil.
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Este ano fizemos uma coisa inédita: descemos a Avenida da Liberdade com os nossos filhos e muitos amigos. A minha filha, que faz parte do grupo dos jovens emigrantes qualificados, foi quem decidiu o que escrevermos na faixa que segurámos Avenida abaixo: "O que andámos p'ra aqui chegar". Uma clara referência a uma estrofe de uma canção de José Mário Branco, que ouvia em criança. Uma homenagem ao autor; um louvor ao povo que sobreviveu a 48 anos em ditadura e a todos os que fizeram o 25 de Abril em 1974; e um tributo também a ela, que percorreu mais de três mil quilómetros, abdicando de dias de férias no Verão, para festejar os 50 anos do 25 de Abril na rua, no seu país. Miguel Sousa Tavares, no Largo do Carmo, no seu comentário televisivo, disse que conversou com muitos jovens que fizeram o mesmo. Há que assinalar: os portugueses que vieram de longe para celebrar.
É importante falarmos do 25 de Abril com os nossos filhos, sem demagogia, com factos: por que aconteceu, como se vivia antes — podemos pegar nos exemplos dados pela professora Ana Soares —, as dificuldades por que passámos depois — eu lembro-me das malas de roupa que levámos à Cruz Vermelha para os retornados, muitos dos que hoje continuam a sonhar com passado; das filas para comprar bens essenciais, da primeira vez que o FMI andou por cá —, mas como tudo valeu a pena porque é sempre melhor viver em liberdade. "Nunca é cedo para começar a falar do 25 de Abril aos mais pequenos", é o título do texto da jornalista Inês Duarte de Freitas, que ouviu especialistas sobre como introduzir o tema — um livro pode ser um óptimo ponto de partida. Não esquecer que, durante este mês, Rita Pimenta tem apresentado, todos os sábados, um novo livro infantil sobre Abril (até rimou!).
Ana e Isabel Stilwell, no seu Birras de Mãe, reflectem sobre como lidar com a nova geração que cresce em liberdade e que tudo questiona, centrando a sua preocupação na escola e nos professores. Margarida Marrucho Mota Amador escreve sobre as desigualdades que persistem na escola e como é difícil combatê-las. E, ao entrarmos na recta final deste ano lectivo, a professora Inês Ferraz dá pistas aos pais para decidirem se mantêm os filhos no pré-escolar ou os inscrevem no 1.º ciclo.
Abril é feito de cravos, mas há outras flores no lobby do hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Vale a pena espreitar e conhecer a história de Nathan Kunigami, o artista que interpreta a arte japonesa. Há também motivos florais nas cerâmicas que os alunos da academia da associação Semear aprendem a fazer. Trata-se de uma organização de apoio a jovens com dificuldades cognitivas e que os prepara para a vida activa, para serem independentes.
Liliana Carona faz um elogio aos seus pais e como vai sentir a sua falta no dia em que já não andarem por cá. "Quando eles partirem, vão-se as vozes, os aromas, os sabores, os ruídos, as gargalhadas traduzidas em áudios nas conversas pelo WhatsApp. Nada voltará a ser igual." Um texto que me parece reflectir um sentimento (quase) universal. Ana Lázaro escreve sobre importância das memórias. "Diz-se que a maioria do corpo é composto por água, mas eu acho que é composto por memórias. Mesmo que elas sejam confusas, enganadas, rabiscadas, se não forem as memórias, o que habita o nosso corpo?"
Os festejos do 25 de Abril trouxeram-me memórias: a de haver palavras que não entravam em nossa casa como "pá", que é uma bengala que continuo a usar (menos vezes por frase que o "tipo" da nova geração); as músicas de intervenção que continuavam a ser proibidas em nossa casa, embora entrassem por outras vias (o chefe católico do meu agrupamento era também o presidente comunista da junta de freguesia. Em vez de entoarmos "a cantiga é uma arma e eu não sabia", a letra era "ser lobito é uma festa, eu já sabia"), o que deixava os meus pais irritados porque pertenceram a uma classe privilegiada, a quem o 25 de Abril trouxe algum sofrimento.
Destes 50 anos que vamos continuar a festejar, vou guardar na memória as canções de José Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Ermelinda Duarte, GAC-Vozes na Luta, ou da Capicua e Garota Não, cujas letras me continuam a comover. Vou guardar a descida da Avenida, o responsório "25 de Abril sempre, fascismo nunca mais". Vou guardar o cantar o Grândola, vila morena num teatro cheio, batendo os pés compassadamente e de braço dado com o desconhecido do lado. No final da festa, virei-me para o namorado da minha filha, vindo de um país onde a "revolução se fez ao contrário", como me disse o próprio, onde deitaram abaixo um regime marxista-leninista, e fiz uma ressalva: "Nós não somos comunistas, acreditamos que todos temos direito a sermos livres."
Boa semana!