Será que o mercado de carbono pode fazer a diferença para cuidar da nossa costa?

O mercado voluntário de carbono português vai incluir projectos de “carbono azul”, que incluem o restauro e conservação de ecossistemas marinhos e costeiros. Poderá ser um ponto de viragem?

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Ria Formosa Rui Santos
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No final de Dezembro, quando foi promulgado o diploma que instituiu em Portugal um mercado voluntário de carbono, uma das boas notícias foi a abertura para os chamados créditos de “carbono azul”, relativos ao carbono capturado e armazenado pelos ecossistemas marinhos e costeiros.

“Foi um passo muito importante”, celebra Catarina Grilo, bióloga marinha e gestora de projecto da Associação Natureza Portugal (ANP/WWF). A versão do diploma que foi posta em consulta pública no início do ano passado, explica, não referia explicitamente os ecossistemas marinhos. Contemplar-se essa possibilidade no diploma final, afirma, “torna o assunto mais visível e facilita que estes projectos se concretizem”.

A ANP/WWF foi uma das entidades parceiras do projecto Carbono Azul, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) com a participação também do Centro de Ciências do Mar (CCMAR). O projecto foi lançado em 2022, aproveitando a atenção para a importância do oceano e dos ecossistemas costeiros no ano em que Lisboa acolheu a Conferência do Oceano, organizada pelas Nações Unidas, e procurava conhecer mais sobre estes ecossistemas em Portugal e analisar a sua capacidade de captação e de retenção de carbono.

O fundamental é não esquecer o oceano”, sublinha Sofia Barbeiro, gestora de projecto da Fundação Gulbenkian. “Vemos como muito positiva esta integração do carbono azul e o reconhecimento dos benefícios dos ecossistemas costeiros.” Estes benefícios são ambientais mas também económicos, incluindo em termos de adaptação às alterações climáticas: sistemas costeiros bem conservados podem ter um efeito tampão face a fenómenos extremos, explica.

Mercado de Carbono

Em que consistem, então, os projectos de “carbono azul” que poderão gerar créditos para o mercado voluntário de carbono? “Passa a ser possível ter projectos de protecção e o restauro de ecossistemas costeiros e marinhos que têm uma grande importância”, explica Catarina Grilo, tendo em conta a grande capacidade de retenção de carbono destes ecossistemas.

O estudo sobre Carbono Azul que juntou a Gulbenkian, a ANP/WWF e o CCMAR contemplou os sapais e as pradarias de ervas marinhas, os dois ecossistemas de carbono azul existentes em Portugal (existem ainda os mangais, mas são característicos das zonas tropicais). O projecto debruçou-se sobre dez estuários e rias ao longo da costa de Portugal continental, como o estuário do Tejo, o estuário do Sado, a ria de Aveiro, a ria de Alvor ou a ria Formosa. “São estuários que têm sapais e ou pradarias de ervas marinhas, para os quais há estudos realizados”, descreve Catarina Grilo. O projecto Carbono Azul procurou mapear ecossistemas costeiros e marinhos em todo o território, calcular o stock de carbono azul que existe nos locais seleccionados pelo projecto e estimar as taxas de sequestro de carbono desses ecossistemas.

Metodologias

Os créditos de “carbono verde”, ou seja, de conservação florestal, já existem há muitos anos, por todo o mundo, mas os créditos por carbono azul ainda não são assim tão comuns. Uma das primeiras questões que se colocam tem que ver com as metodologias para estimar quanto carbono cada ecossistema é capaz de capturar, no sentido de calcular o número de créditos que cada projecto pode gerar.

Que desafios diferentes têm as metodologias para estes créditos? “Para qualquer tipo de mercado voluntário, seja ele verde ou azul, algumas condições precisam estar satisfeitas”, explica Raul Xavier, da ANP/WWF, que foi consultor do projecto para o carbono azul e autor do “Roteiro para o Mercado Voluntário em Portugal”, publicado no ano passado, produzido no âmbito do projecto. “A disponibilidade de dados sobre os ecossistemas é fundamental, ou seja, o conhecimento sobre o armazenamento e o fluxo de carbono, o estado de conservação desses ecossistemas, as ameaças a esses ecossistemas”, enumera - e muitas destas informações ainda estão por recolher de forma consolidada.

“Há uma grande variabilidade destes ecossistemas, extremamente diferentes uns dos outros”, nota ainda Catarina Grilo. Ou seja, cada projecto terá que incluir um estudo detalhado das características daquele ecossistema em particular, já que existe “grande variabilidade das taxas de sequestro e retenção mesmo dentro de um determinado ecossistema, entre zonas do mesmo local”, explica a bióloga marinha.

Apesar do grande potencial de captura de carbono, podendo dar um grande contributo para atingir a neutralidade climática, o carbono azul ainda não é contabilizado para efeitos do inventário nacional de emissões de gases com efeitos e estufa, não contando para efeitos das Contribuições Nacionalmente Determinadas no âmbito do Acordo de Paris. Na COP28, que teve lugar no Dubai em Dezembro, foram dados novos passos, mas ainda pequenos, no reconhecimento do oceano como essencial no equilíbrio climático.

Projectos

A protecção da biodiversidade é um compromisso assumido por Portugal tanto a nível da União Europeia como das Nações Unidas. Não haverá, então, algum risco em misturar um instrumento de mercado numa missão que é pública?

Sofia Barbeiro nota que a perda histórica significativa dos ecossistemas de carbono azul em Portugal torna urgente encontrar soluções para estes problemas a que o Estado não tem sido capaz de responder. “É importante proteger, evitar que se continue com estas perdas”, alerta a gestora de projecto da Gulbenkian.

Para Catarina Grilo, da APN/WWF, as empresas - à partida, os principais compradores de futuros créditos de carbono - têm um papel importante, já que o investimento nos projectos pode ser feito “desde a fase inicial”. A ambientalista faz, desde já, um apelo às empresas: “Não fiquem só à espera que o projecto esteja feito e com créditos de carbono prontos para começar a investir”. “É muito importante começarem a investir numa fase precoce, logo no desenvolvimento dos projectos, e não apenas estarem disponíveis para comprar os créditos de carbono quando os projectos estiverem concluídos”, salienta.

Também Sofia Barbeiro, sublinha a importância das empresas no “pré-investimento”, ou seja, contribuindo desde logo para financiar a análise detalhada dos stocks de carbono e a identificação dos valores de referência, que são essenciais para calcular os créditos dos projectos que serão incluídos no mercado voluntário de carbono.

Em termos práticos, é preciso ainda que se esclareçam algumas questões burocráticas mais específicas dos ecossistemas costeiros e marinhos, em particular no que toca às áreas em domínio público: “é importante ter clareza sobre as restrições e as autorizações que são necessárias e quais são as instituições que devem ser envolvidas”, explica Raul Xavier.

Impacto social positivo

Os mercados voluntários de carbono de dimensão internacional têm estado sob escrutínio nos últimos anos, em particular desde que começaram a surgir denúncias de má gestão dos territórios para os quais foram vendidos créditos.

Para garantir a integridade do mercado português, em particular no que toca aos projectos em ecossistemas costeiros e marinhos, uma das recomendações do projecto Carbono Azul foi a criação de um Fórum de Carbono Azul, uma plataforma que reúna os diferentes actores que intervêm nos projectos, em diálogo com o Governo, para discutir e partilhar experiências, sejam nacionais, sejam internacionais. “Temos todos a ganhar se houver uma credibilização forte deste mercado voluntário”, afirma Catarina Grilo.

Outra questão essencial do mercado voluntário de carbono é garantir que os projectos têm uma visão abrangente, que inclua também as comunidades. “Não pode um projecto visar os créditos de carbono, mas depois criar outros problemas”, alerta Raul Xavier. Aliás, pelo contrário, a recuperação e conservação destes ecossistemas de carbono azul pode trazer uma série de benefícios adicionais, como a geração de rendimentos para a população que habita nestas regiões. “Num momento de crise climática, mas também de crise da biodiversidade e de crise humanitária, esses projectos devem também levar em consideração melhorar essas condições e esses serviços que já são fornecidos por esses ecossistemas”, reforça.

Apesar de se tratar de um mercado, “o que é o essencial deste tipo de projectos de carbono azul é a protecção e restauro destes ecossistemas”, conclui Catarina Grilo. “A geração de créditos de carbono é um benefício mais à frente, mas não é o objectivo principal.”

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