Sylvia Earle: “Não fomos nós que fizemos a Terra, mas estamos a tirar a vida da Terra”

Para a célebre oceanógrafa, é preciso “parar de matar” os seres que habitam os oceanos – o que inclui cuidar do planeta para que os delicados equilíbrios naturais não ultrapassem as suas fronteiras.

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A oceanógrafa Sylvia Earle em Lisboa no ano de 2018 Miguel Manso
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“Temos o poder de manter o planeta estável”: foi com uma nota de esperança que a oceanógrafa Sylvia Earle rematou a sua intervenção num painel na COP28 organizado pela aliança Global Choices, neste sábado, sob o mote “somos todos espécies dependentes do gelo”.

Com a sua voz aveludada e narrativas sempre na ponta da língua, a célebre cientista conduziu a plateia do Pavilhão da UNFCCC pelas memórias do seu primeiro mergulho até ao fundo do mar, quando, em 1979, desceu a 400 metros de profundidade com “um fato de astronauta”. “Eu conseguia ver a vida”, descrevia, enquanto mostrava as fotografias do mundo quase sobrenatural que encontrou, incluindo seres bioluminescentes. “A maioria da vida na Terra prefere o frio. Precisa do frio. O que acontecerá a estes seres quando mudamos a temperatura? Estas luzes vão desaparecer?”

“É preciso proteger a natureza porque as nossas vidas dependem disso”, afirmou ainda, reforçando a importância de uma moratória para a mineração do fundo do mar e um reforço na monitorização de actividades como a pesca industrial em alto mar ou outras actividades de “extracção em larga escala”. Não é preciso, explica, colocarmos tudo “numa folha de balanço” – basta “tratar o oceano com dignidade, respeito”. “Parem de matar. Comecem a cuidar. Tornem o cuidado uma moda.”

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Sylvia Earle na Conferência dos Oceanos em Lisboa, em 2022 Nuno Ferreira Santos

À saída do pavilhão da UNFCCC, o Azul acompanhou Sylvia Earle no caminho para a sua intervenção seguinte, puxando o fio à meada lançada pela cientista sobre a necessidade de “deixar os oceanos em paz”.

Uma das coisas mais impressionantes sobre a forma como nos preocupamos ou não com o oceano é esta ideia de termos de pôr um preço ou criar um mercado para darmos atenção às coisas. Quais são as soluções para fugir a essa “mercantilização” do oceano?
As pessoas não se preocupam se não estiverem informadas. A solução número um é fazer com que as pessoas compreendam o que está em risco, o que está em jogo. Dizer que temos de proteger o oceano como se as nossas vidas dependessem disso. É a pura verdade. E quanto mais retiramos do oceano, ou quanto mais usamos o oceano como lixeira, estamos a colocar-nos em risco. E podemos alterar a pressão sobre a vida no oceano nos nossos pratos através de escolhas pessoais.

Podemos esperar que os governos actuem, ou podemos olhar-nos ao espelho e dizer: o que posso fazer? Que influência é que eu tenho? Estamos a tirar a vida selvagem do oceano... Estou a falar de atum, de peixe-espada, de krill da Antárctida, lulas, seja o que for. Uma parte vai directamente para consumo humano, grande parte vai para alimentar animais que nós comemos e uma grande parte é simplesmente descartada, desperdiçada. Estamos a matar como se não houvesse necessidade de nos preocuparmos. Por vezes, matamos apenas pelo prazer de o fazer, matamos por desporto. Parem a matança. Custe o que custar.

Cada pessoa pode fazer uma escolha quando vai à mercearia, ao restaurante, e ser uma voz para o oceano, uma voz para aqueles que não têm voz. É preciso compreender porque é que isso é importante, não devia ser tão difícil. A Terra é o que é –​ um planeta habitável, hospitaleiro, sustentável. Não por estarmos aqui, mas por causa da estrutura da vida que levou literalmente milhares de milhões de anos a ser construída, e nós levámos décadas a destruir, a cortar as ligações biogeoquímicas críticas que fazem a Terra funcionar a nosso favor. Parece um pouco marrão falar em ciclos biogeoquímicos, mas não é assim tão difícil.

Nós vivemos porque a Terra está viva. Não fomos nós que fizemos a Terra, mas estamos a tirar a vida da Terra e a colocar-nos em risco como consequência disso. Os sistemas vivos são sistemas de carbono: os sistemas de captura de carbono funcionam através da fotossíntese, capturando dióxido de carbono, gerando alimento, gerando oxigénio, no oceano e na terra. E esse carbono vai para a vida, os peixes, as árvores, o que quer que seja. Só precisamos de acordar e proteger a natureza. Essa é a resposta.

Diz que temos o poder de manter o planeta estável. Teremos mesmo? Temos visto grandes indústrias a influenciar as negociações para continuar a emitir...
Os seres humanos são a causa da crise actual, mas também somos a cura. As baleias não conseguem resolver o problema. Os elefantes são muito inteligentes, mas não conseguem resolver o problema. Mesmo que soubessem a causa, não sabem ou não poderiam fazer o que é preciso para inverter o declínio. E eu vejo grandes investimentos em soluções de engenharia para capturar carbono, para capturar metano, para capturar óxido nitroso, os gases com efeito de estufa...

O mais óbvio a fazer é, antes de tudo, não causar danos, proteger o que funciona. Devíamos concentrar-nos na lógica de não minerar, de não retirar a vida selvagem do oceano às toneladas, deixar o alto-mar no seu canto, o núcleo do nosso sistema de suporte de vida. As nações individuais podem complementar a protecção, tanto quanto possível, das áreas que ainda estão em bom estado. Por que razão se pensa sequer em perturbar o mar profundo? Por que razão pensamos sequer em continuar a apanhar krill na Antárctida, por exemplo? Ninguém pode justificar isso como práticas tradicionais, ou mesmo como uma justificação economicamente sensata. Mas estas actividades continuam a ser subsidiadas, por isso os contribuintes devem dizer não.

Com as lógicas económicas a tornar-se irracionais, que argumentos é que podem ser usados junto dos governos para serem mais eficazes?
Há "líderes azuis", digamos assim, que estão a assumir a liderança. E temos um quadro em vigor que deverá levar as pessoas a avançar na direcção certa, o Tratado do Alto-Mar. Só precisamos que as nações o ratifiquem. E isso significa assumir um compromisso efectivo – e depois dar seguimento. Porque é que estamos sequer a pensar em continuar a pesca industrial no alto mar? É uma coisa que, de uma assentada, ajudaria enormemente a manter o planeta a trabalhar a nosso favor, a manter o carbono no oceano. Não se trata de segurança alimentar quando falamos em retirar a vida selvagem dos oceanos do alto mar, ou do Árctico, ou da Antárctida. É apenas ganância, não é necessidade. É preciso acabar com isso. Não temos mais tempo.

O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Oceano Azul

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