Morreu a actriz brasileira Léa Garcia (1933-2023), a Serafina de Orfeu Negro

Com uma longa carreira nos palcos, no cinema e na televisão, a actriz morreu esta terça-feira, aos 90 anos, no festival de Gramado, no estado brasileiro de Rio Grande do Sul, onde ia ser homenageada.

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Léa Garcia homenageada no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em 2019 Mathilde Missioneiro/Folhapress
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A actriz brasileira Léa Garcia, nomeada em 1959 para o prémio de melhor interpretação feminina do Festival de Cannes pelo seu papel no filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, morreu esta terça-feira, aos 90 anos, no Festival de Cinema de Gramado, no sul do Brasil, onde se preparava para receber o prémio de carreira Oscarito.

Com uma extensa carreira no teatro, cinema e televisão, iniciada nos anos 50, quando eram ainda poucas as actrizes negras brasileiras com um trajecto profissional reconhecido, Léa Garcia subiu pela primeira vez ao palco em 1952, aos 19 anos, pela mão do dramaturgo, actor e activista Abdias do Nascimento, com quem teve dois filhos, e teve uma fulgurante estreia no cinema em 1959 com Orfeu Negro, uma recuperação do mito de Orfeu e Eurídice no cenário do Carnaval do Rio de Janeiro, que lhe valeu uma nomeação ao prémio de melhor interpretação feminina do Festival de Cannes, e valeu ao seu realizador, o francês Marcel Camus, o Óscar para o melhor filme estrangeiro, atribuído no ano seguinte.

Ao teatro e ao cinema, a actriz somou participações em algumas das mais icónicas séries televisivas brasileiras, algumas delas com grande sucesso em Portugal, como Casarão ou Escrava Isaura, onde interpreta a vilã Rosa.

Nascida no Rio de Janeiro em 1933, Léa Garcia perdeu a mãe muito cedo e foi educada pela avó desde os 11 anos. Queria ser escritora, como contará mais tarde, mas o encontro com Abdias do Nascimento acabou por a levar para o teatro. Figura fundamental da cultura negra e das lutas pelos direitos humanos no Brasil, o dramaturgo convenceu-a a aceitar um papel, em 1952, numa encenação da sua peça Rapsódia Negra pelo pioneiro Teatro Experimental do Negro, que ele próprio fundara.

Mas a peça que lhe deu mais visibilidade nessa fase inicial da carreira foi Orfeu da Conceição, uma peça de Vinicius de Moraes inspirada no mito grego de Orfeu. Léa Garcia tinha sido pensada para o papel de Eurídice, mas ela própria preferiu o de Mira. Os ensaios decorreram na própria casa do poeta e a peça, estreada em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, contou com música de Tom Jobim e cenários desenhados por Oscar Niemeyer.

É esta peça que está na origem do filme de Marcel Camus, no qual Léa Garcia interpreta uma prima de Eurídice, Serafina, que a recebe em sua casa, na favela carioca.

Em 1960, a actriz entra ainda num outro filme de Camus, Os Bandeirantes, e em 1963 contracena com Antônio Pitanga em Ganga Zumba, de Carlos (Cacá) Diegues, que conta a história do fundador e primeiro líder da comunidade de escravos foragidos do Quilombo dos Palmares, no século XVII. Fez depois vários outros filmes com Cacá Diegues, como Orfeu (1999) ou Atabaque Nzinga e O Maior Amor do Mundo, ambos de 2006.

Em 2004 protagoniza As Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, uma interpretação que lhe vale o prémio de melhor actriz no Festival de Cinema de Gramado, e em 2013 é premiada nos festivais de Gramado e de Toronto, no Canadá, pela sua interpretação de Luzia na curta-metragem Acalanto, de Arturo Sabóia, inspirada num conto de Mia Couto. Praticamente até ao final da vida, continuou a trabalhar em cinema. Pacificado (2019), de Paxton Winters, e Um Dia Com Jerusa (2020), de Viviane Ferreira, são exemplos dos últimos filmes em que participou.

Ao mesmo tempo que se estreava no teatro e no cinema, Léa Garcia começou também a trabalhar em televisão ainda nos anos 50, primeiro na TV Tupi e na TV Rio, e a partir do início dos anos 70 na TV Globo, onde participou numa sucessão de telenovelas, incluindo, em 1976, a já referida Escrava Isaura.

Sucesso de audiências tanto no Brasil como em Portugal, Escrava Isaura trouxe-lhe uma celebridade nem sempre confortável, já que interpretava a vilã da história, Rosa, uma escrava que intrigava contra a protagonista, Isaura. A actriz contará mais tarde que chegou a ser fisicamente agredida, num mercado, por uma vendedora armada com um peixe que mostrava alguma dificuldade em separar a actriz da personagem.

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