Testemunhas confirmam agressões anteriores no caso do homicídio de Jéssica

No quarto dia de julgamento, testemunhas comprovaram estada de Jéssica na casa dos supostos homicidas, agressões anteriores e ameaças à mãe. Padrasto e avó materna não prestaram declarações.

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Jéssica Biscaia morreu no ano passado, em Setúbal, vítima de maus tratos Ricardo Lopes
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Ao quarto dia do julgamento do homicídio de Jéssica Biscaia, a criança de três anos que morreu no ano passado em Setúbal vítima de maus tratos, as testemunhas ouvidas pelo tribunal confirmaram vários pormenores da acusação.

Os depoimentos comprovam aspectos como a estada de Jéssica na casa da família de Ana Pinto, Justo Montes e Esmeralda Pinto, acusados de homicídio qualificado, agressões anteriores às que lhe provocaram a morte e ameaças de Esmeralda Montes à mãe da criança, por dívidas.

Uma das testemunhas, que conhece as arguidas, do café, relatou um episódio em que Ana Pinto, conhecida por Tita, e Esmeralda, andavam à procura de Inês Sanches, a mãe de Jéssica.

“Eu estava no café, onde a Tita e a filha iam, e numa das vezes perguntaram-me onde morava a dona Alice, dona da casa onde morava a dona Inês [e o companheiro Paulo Amâncio]. Ouvi a dona Esmeralda dizer “a Inês a mim paga-me a bem ou paga-me a mal. Foi a Esmeralda que disse, de uma forma agressiva”.

Um episódio, garante a testemunha, que teve lugar “umas semanas, no máximo um mês”, antes da morte de Jéssica.

Esta testemunha confirma que a mãe de Jéssica dizia que a filha estava numa colónia de férias. “Um dia, nessa semana anterior à morte de Jéssica, perguntei-lhe pela menina e ela disse-me que estava numa colónia de férias”, afirmou.

Outra testemunha, que trabalha num outro café frequentado por Inês Sanches, confirma que a mãe da criança dizia que a filha ia passar uns dias de férias com a escola e que viu ferimentos na menina.

“A última vez que vi menina, ia com uma mochila às costas e a mãe a dizer que ia para uma colónia de férias. Foi uma semana antes [da morte da criança], talvez até menos. Não tenho noção quanto tempo antes, mas, duas ou três semana antes, apareceu lá com uma nódoa negra na face, perto da boca e a menina estava esquisita, talvez dorida, cabisbaixa. Não estava alegre e mexida como habitualmente. Perguntei à Inês e ela disse-me que a menina caiu. Depois, quando sai à rua para fumar um cigarro, a mãe disse-me: ‘ai Sandra, não sabes como é que a minha menina está’. Levantou a blusa e a sainha e a menina tinha uma dentada no braço e muitas nódoas negras. Eu disse-lhe: o que estás ainda aqui a fazer? Vai ao hospital. Ela disse-me que não podia porque no hospital lhe tiravam a menina, por acharem que era ela que a maltratava. Eu sabia que não era a Inês. Vi que ela estava aflita.”, relatou esta testemunha.

O mesmo depoimento garante que, no dia em que Jéssica morreu, a mãe também passou à porta do café, por volta das 9h30, o que coincide com a versão da acusação de que Inês Sanches foi buscar a criança, nesse dia 20 de Junho de 2022, por volta das 9h40.

De acordo com o despacho de acusação, a mãe encontrou-se com Ana Pinto e Esmeralda Montes, nesse dia de manhã, na Praça do Quebedo, para lhe entregarem a filha, que estava “prostrada, quase inanimada”.

Uma terceira testemunha, um homem que também conhecia Jéssica, conta ter visto a criança nos braços da mãe, em direcção a casa. “Pensei que estivesse doente, parecia que ia a dormir”, disse esta testemunha que não sabe precisar a hora nem o dia.

Uma quarta testemunha confirmou igualmente que Inês Sanches lhe disse, “uma semana ou duas antes” da morte da menina, que a filha “ia para uma colónia de férias” e identificou um colar de bugigangas, que dera a Jéssica e de que a criança nunca se separava, e que foi encontrado nas buscas à casa da família Montes.

Nesta audiência foram também exibidas fotografias das buscas às casas dos arguidos e, entre as coisas encontradas na residência dos acusados de homicídio, estão uma garrafa de lixivia — a acusação sustenta que a casa foi lavada depois de a criança ser entregue à mãe —, manchas de sangue, na cama e em roupas de Jéssica, cujas análises “deram positivo”, disse o juiz presidente.

Padrasto não quer prejudicar-se

O ex-companheiro, que viveu nove meses com Inês Sanches, recusou prestar declarações em julgamento. Tem esse direito, por ter uma relação análoga à relação familiar com a arguida, e exerceu-o porque o advogado lhe disse que “poderia ser prejudicado”.

Ainda disse que queria contribuir para a descoberta da verdade, mas como já tinha feito o seu depoimento na Polícia Judiciária (PJ) e o seu advogado o aconselhou a não prestar declarações, não falou.

O juiz presidente, Pedro Godinho, esclareceu a testemunha de que não seria prejudicada, a não ser que mentisse, e que as suas declarações em tribunal eram importantes, porque o depoimento na PJ não serve de prova, mas Paulo Amâncio manteve a decisão.

Este testemunho era particularmente relevante uma vez que o padrasto passou cerca de cinco horas com a menina, no último dia de vida de Jéssica. A criança, já inanimada e com visíveis sinais de agressões, foi deitada pela mãe por volta das 10 horas, de dia 20 de Junho de 2022, e só às 15h05 é que Paulo Amâncio ligou para o 112 para pedir socorro.

Rosa Tomaz, avó materna de Jéssica Biscaia, também exerceu o direito a não prestar declarações, por ser familiar de uma arguida, e não falou em tribunal.

Quase no final do dia, o tribunal começou a ouvir a reprodução dos depoimentos de arguido-detido. Só foi possível ouvir o depoimento de Justo Montes, que confirmou que Jéssica esteve na casa da família uns “três, quatro ou cinco dias”, na vez anterior à morte, e que ficou com ferimentos na zona da boca por ter “caído de uma cadeira”. Disse ainda que não estava em casa nesse momento, por “ter saído para comprar fraldas para a neta” e que a menina entrou em convulsões.

“Quando a menina caiu, bateu com a boquinha, e tinha um bocadinho de sangue. Mas a menina estava viva. Tinha o lábio ferido. A menina começou a enrolar a língua, mexia as mãozinhas e os bracinhos, mas não falava. A minha mulher pôs-lhe uma colher na boca [para não asfixiar]. A minha mulher ligou-lhe [à mãe] a dizer ‘olha vem cá que nós vamos ao hospital com a miúda’ e ela disse ‘não precisa, isso não é nada, amanhã ela já está boa’.” Disse Justo Montes no primeiro interrogatório de arguido-detido.

A reprodução do depoimento de Inês Sanches, que se remeteu ao silêncio em tribunal, vai ser reproduzida na próxima audiência.

Neste quarto dia de julgamento foram ouvidas mais quatro testemunhas pelo que, das 15 de acusação já só falta a audição de quatro, entre as quais a inspectora da Polícia Judiciária (PJ) responsável pela investigação.

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