Morangos com chantili ou... mulheres que irritam os portugueses

Portugal é ainda um país profundamente machista, mal disfarçado e encoberto por homens e mulheres que perpetuam a leitura conservadora dirigida às mulheres.

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Os comentários mais violentos e alguns de índole sexual são escritos por homens Kamalig/Pexels
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Já muito se escreveu sobre a violência online dirigida a mulheres, com algumas figuras públicas a denunciarem e a partilharem os seus testemunhos, inclusivamente em livros. Mas toda a literatura não será suficiente para erradicar um problema de raiz, quando se ouve alunos, nos bancos de escola, afirmarem que aquela atriz que expõe o seu corpo é uma badalhoca.

Portugal é ainda um país profundamente machista, mal disfarçado e encoberto por homens e mulheres que perpetuam a leitura conservadora dirigida às mulheres. E neste contexto, há mulheres em particular, que de forma mais acentuada são vítimas de cyberbullying. Olhamos e deciframos a violência concretizada longe, a milhares de quilómetros do nosso país, em mil e um debates, mas desvalorizamos este tipo de agressão que deixa marcas e mais do que isso parece que os media têm dificuldade em dar voz ao tema.

A primeira das mulheres cuja agressividade online a si dirigida denoto ter mais frequência, tem o nome de Margarida Corceiro, 20 anos, uma das figuras públicas portuguesas mais seguidas no Instagram com um milhão e 500 mil seguidores, tendo sido considerada pela Forbes, a personalidade mais influente da rede social em Portugal.

Em "publicações" nas redes sociais, às quais um jornalista digno desse nome, não chamará "notícias", lemos que Margarida Corceiro cobra dez mil euros por cada publicação, enquanto produtora de conteúdos digitais, e nas caixas de comentários, um rol de selvagens classifica-a de tudo e mais alguma coisa. Mesmo no seu perfil pessoal no Instagram, é rara a publicação em que não se vislumbre um comentário que atente contra a sua conduta, ou que a sexualize.

Margarida Corceiro é uma jovem de 20 anos, a tentar crescer na profissão que escolheu. A maioria das leituras que fazem de si, nas redes sociais, são do meu ponto de vista, ordinárias, agressivas, e refletoras da nossa sociedade.

Parece que esta miúda irrita, assim como irrita a ativista Clara Não, feminista assumida, toca em temas que parecem ainda provocar urticária aos leitores, sobretudo masculinos, que lendo os títulos a letras garrafais, não procuram entender a pertinência dos temas que aborda. Muitas vezes temas também postos em causa por mulheres que não compreendem determinadas problemáticas que, por vários motivos, nunca as afetaram.

Ridicularizar a insegurança que algumas mulheres sentem em andar nas ruas portuguesas, por exemplo, é negar a existência de um tipo de violência, reconhecido pela APAV. Obviamente que essa insegurança de que falam algumas mulheres, nunca será compreendida por quem não a sente, por quem não vê o outro lado da moeda, aliás com certeza, até negará, ou contestará outra visão, outra partilha íntima, diferente da sua experiência. Se uma mulher relata ser assediada, ou abordada na rua por estranhos, a tendência continua a ser, apontar o dedo à mulher provocadora, vistosa, que chama a atenção.

Há duas semanas, Cristina Ferreira publicou uma série de fotografias na rede social Instagram, com a legenda: Hoje não fui ao ginásio. O equipamento vermelho brilhante que vestia, fazia transparecer os mamilos, espoletando comentários como: “Adoro um farol aceso", "só vieste mostrar o bicho"; "dar nas vistas à força"; "adoro o teu sistema de iluminação", entre adjetivos como: sexy, hot, provocadora. Todos estes comentários que cito foram escritos por homens, com redes sociais, alguns casados, com filhas e filhos. Perdem tempo a escrever, a conotar, a classificar mulheres que não conhecem, protegidos pela barreira do virtual, dizem o que lhes vai no fosso, aquilo que hesitariam dizer na rua. Hesitariam, mas talvez alguns, não conseguissem evitar dizê-lo.

Também vítima da mediocridade de comentários virtuais, Carolina Deslandes, em entrevista ao Alta Definição, na SIC, descreveu assim o que lhe vai na alma — não há nada que ofenda mais uma sociedade conservadora, do que uma mulher livre, e nós podemos todos dizer que somos muito modernos, é mentira e é profundamente hipócrita —, salientando que na nossa sociedade, à mulher cabe o papel da mulher de recato, de delicadeza, de algum pudor com a sua vida amorosa, que se pede uma ponderação às mulheres e uma calma que não se exige aos homens.

Na chuva de comentários ao excerto publicado, surge como sempre o ataque aos movimentos feministas, a negação da realidade desabafada e a apresentação de outras vítimas, do género masculino, como forma de inferiorizar o testemunho.

Ainda assim, os comentários mais violentos e alguns de índole sexual são escritos por homens. Mas o que muitos homens e mulheres continuam sem entender é que não se trata de uma guerra de sexos ou de géneros, mas é o direito de a pessoa ser.

Negar estas realidades, estas partilhas, querer ocultá-las, querer fazer de contas que está tudo bem, é profundamente irritante. Às corajosas que dão voz, como a Carolina Deslandes, o meu obrigada.

Há algum tempo, uma influencer portuguesa solicitou aos seguidores partilhas sobre as experiências em dating apps, e talvez para espanto ou não, a maioria delas envolvia o relato de agressões físicas ou verbais num primeiro encontro por parte de homens. Se isto não dá que pensar… Mas pronto, será sempre mais fácil escrever e falar sobre morangos com chantili.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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