De Tróia à Comporta, um roteiro para comer bem
Entre a Península de Tróia e a Comporta mora o paraíso que meio mundo cobiça. Do arroz ao peixe fresco, passando pelo vinho e outras guloseimas, nesta língua de areia há muito por descobrir – e provar
Praias dignas de anúncio de marca de perfume de luxo. Uma paisagem tranquila onde verde e branco coabitam envolvidos no azul do Atlântico, de um lado, e o do Sado, do outro. Mágico.
Esta faixa costeira que vai do cais de Tróia aos arrozais da Comporta só recentemente apareceu no radar do mundo inteiro, gerando curiosidade tanto junto de estrelas de Hollywood como com famílias com filhos pequenos. Heranças agrícolas e piscatórias, turismo e a identidade, progresso e a preservação – tudo isto coabita neste microcosmo a sul de Lisboa.
Tanto Tróia como a Comporta têm uma história fascinante e já com vários séculos. Na primeira, por exemplo, entre os séculos I e V, existiu aquilo que muitos arqueólogos consideram uma das mais importantes indústrias de peixe do Império Romano. Sabe-se que a sardinha era o principal fruto do mar aqui processado e que eram várias as ânforas dedicadas à feitura de garum, um molho de peixe fermentado que ainda hoje se encontra em restaurantes. As Ruínas Romanas de Tróia corroboram isto mesmo: nesta “fábrica” chegaram a ser processadas 700 toneladas de peixe com recurso a 300 toneladas de sal, matéria-prima necessária para encher os quatro cantos do império com conservas e molho de peixe.
A tradição pesqueira nunca se perdeu totalmente, mas Tróia foi gradualmente virando-se para outra área de negócio. O turismo, com o passar do tempo, foi crescendo, muito porque esta era uma zona de passagem para viajantes que rumavam ao sul do país e precisavam de parar para descansar – assim nasceram as primeiras hospedarias da região, algumas logo no século XVI. Esse estatuto viria a consolidar-se e Tróia passaria a ser sinónimo de férias e praia – algo que até hoje mantém.
Alguns quilómetros abaixo, a pesca dá lugar à agricultura, principalmente o cultivo do arroz, que continua a ser um dos maiores cartões-de-visita da Comporta. Esta zona, privilegiada pelo acesso a praias paradisíacas como o Carvalhal, sofreu uma lenta evolução, passando da pacatez de uma aldeia rural para um epicentro de cosmopolitismo, com pessoas de todo o mundo que vêm pelos mergulhos e pelo descanso. A Comporta é hoje “o sítio” onde meio mundo quer estar. Nas sugestões que se seguem damos ainda mais motivos para descobrir este recanto de costa encaixado entre o Sado e o Atlântico.
Um especialista em marisco vindo de Elvas
Rui Sequeira fala com conhecimento de causa. Está no El Cristo há vários anos e é ele que revela as raízes alentejanas desta casa no coração da Marina de Tróia.
A casa-mãe fica num ponto diametralmente oposto do mapa, em Elvas. O motivo: “Manuel Mendão foi dos primeiros exportadores de marisco português. Sozinho, ia de Setúbal a Milão e de Setúbal à Bretanha, para ganhar os dois fretes”, explica Rui. Ao cabo de algumas dezenas dessas viagens, ao passar por Elvas, como fazia sempre, Manuel descobriu um espaço perto do Santuário do Senhor Jesus da Piedade.
“Como não havia sítios de peixe e marisco na região, decidiu montar aí o restaurante”, conta Rui Sequeira. Assim que nasceu o El Cristo original, em 1977. Em 2015, já com Miguel, filho de Manuel, a gerir o negócio, inaugurava a sucursal de Tróia.Desde então, este restaurante tem-se dedicado àquele que sempre foi o propósito de Manuel Mendão: servir o marisco e o peixe mais frescos das redondezas. A sapateira e a santola são os mais pedidos, mas o clássico prego no pão também nunca falha. O peixe, sempre fresco e vindo de Setúbal, também é incontornável.
El Cristo
Alameda da Marina, LM-1, Tróia (Grândola)
Tel.: 265490705
Das 12h00 às 23h00. Encerra à terça
Preço médio: 40 euros
Elegância com simplicidade
Tudo começou com a empresa de catering que Patrícia Veiga criou há 18 anos, depois de deixar a carreira de delegada de informação médica. Começou com uma equipa de duas – ela própria e a sua mãe, Maria José –, mas rapidamente passou a ter 11 colaboradores a tempo inteiro. Foi um sucesso.
Em Julho de 2019, Patrícia decidiu dar outro salto: abrir uma quinta para eventos em Setúbal. Mas depois surgiu a pandemia. Apesar do choque, “já tinha começado o namoro com o grupo Pestana” para explorar o espaço que actualmente ocupam no Pestana Eco-Resort, de Tróia, e o romance acabou por correr pelo melhor: “Em Maio de 2020 fechámos acordo e três semanas depois, em Junho, abríamos no espaço que ocupamos hoje”, remata.
Apesar de este Grão de Bico ter sido pensado para funcionar apenas em take-away, acabou por virar restaurante, mercearia e garrafeira. Seja ao pequeno-almoço, ao almoço ou ao jantar, aqui serve-se comida elegante mas simples, onde tanto tem lugar a raiz típica portuguesa como outras influências.
Grão de Bico
Pestana Tróia Eco-Resort, EN 253-1 (Grândola)
Tel.: 265105075
Das 09h00 às 16h30; sexta e sábado até às 22h30. Encerra à segunda
Preço médio 30 euros
Das mercearias às ostras & bolhas
É nas paredes forradas de artigos que mora a história desta casa familiar. Carlos Gomes é filho de José Maria Gomes e Maria Marcelino, fundadores da Mercearia Gomes, e é ele que hoje, com o seu irmão António, lidera esta casa que lhes está no sangue há 40 anos.
“Tudo começou de maneira muito simples”, conta Carlos. A mercearia que os pais abriram era bem mais básica do que aquilo que hoje se vê, mas já nessa altura era influenciada pelo turismo, que Carlos diz não ser novidade nenhuma nesta zona da Comporta. “Primeiro tivemos os campistas, do campismo selvagem, mas as coisas foram crescendo e agora temos turistas que procuram o aluguer de casas ou estadas em resorts.”
Foi esta mutação que motivou o crescimento e o refinamento daquilo que vendia. Por aqui se encontra mais do que os simples vegetais para a sopa ou o pacote de farinha: há uma selecção invejável de vinhos, conservas, queijos, enchidos e muito mais. Além da Mercearia, Carlos e a família têm ainda uma padaria, um espaço de vinho e petiscos e até uma espumanteria, que serve todo o tipo de “bolhas” assim como boas ostras do Sado ou um caviar de fino recorte.
Mercearia Gomes
Rua do Secador, 14, Comporta (Alcácer do Sal)
Tel.: 265497177
Das 09h00 às 13h00 e das 15h00 às 19h00. Encerra domingo à tarde
Gelados artesanais e uma esplanada muito cool
Gonçalo Diniz e o seu sócio, Pedro Machado, deixaram Londres em 2018 para se dedicarem ao mundo dos gelados. “Sentimos que não havia na Comporta um gelado artesanal realmente bom, era uma lacuna no mercado”, explica Gonçalo.
Como ninguém nasce ensinado, a dupla rumou a Itália, primeiro, para passar uma temporada em Bolonha a aprender todos os segredos sobre como se faz um gelado de qualidade superior. No regresso, nasceu a Gulato, primeiro na forma de um carrinho de venda ambulante, mais tarde um poiso fixo, com uma esplanada invejável.
“Temos mais de 200 receitas”, conta Gonçalo antes de esclarecer que dessas, 18 estão disponíveis todos os dias – mais outras 40, em embalagens prontas para levar para casa. Privilegiam sempre os produtores locais, como os de “morangos, framboesas, mirtilos e limão", e isso traduz-se em combinações vencedoras como pistácio com flor de sal, maçã verde com lima e hortelã, ou abacaxi com hortelã.
Entre os sabores favoritos em cone e copo estão o morango e o chocolate escuro (que é vegano e com açúcar reduzido), mas não faltam outros clássicos como batidos de gelado ou brownies bem gulosos.
Gulato
Aldeia do Possanco, Comporta (Alcácer do Sal)
Tel.: 913998042
Das 14h00 às 19h00; fim-de-semana, a partir das 11h00. Encerra à segunda e à terça
Quando tudo faz sentido
Joana Zanotta é mais um exemplo de que nunca é tarde para se mudar de carreira. Depois de vários anos enquanto professora do ensino primário, precisou de se reinventar: “O meu pai tinha esta carrinha amarela que nós renovámos e começamos a usar como food truck em eventos”, conta.
Joana sempre passou férias na Comporta, local que adora, e quando se cansou dos eventos assentou precisamente aqui, há seis anos. A carrinha itinerante Zanotta parou, ganhou um bar e uma esplanada, mas continua a ser rainha e senhora a piadina, essa sanduíche italiana feita com pão achatado muito fino.
Joana já tinha uma ligação familiar a Itália – o apelido até o denuncia – e quis oferecer algo simples de fazer. Tudo fazia sentido. Agora servem também cocktails clássicos como mojitos ou caipirinhas, bem como vinhos da região e cerveja. Tudo isto com festas sunset frequentes, acompanhadas por piadine de presunto com rúcula e pesto, de queijo de cabra e nozes, ou salmão fumado com pepino.
Zanotta
Largo de São João, Comporta (Alcácer do Sal)
Tel.: 91098200
Das 15h00 às 00h00. Não encerra
Preço médio 15 euros
Vinhos e cozinha de autor
A história do Almo Comporta começa há 16 anos, com um negócio familiar no coração da vila. Daniel Silva recorda a pequena sapataria que a sua mãe ali teve, que depois viria ser uma pastelaria chamada Eucalyptus. Em 2021, deu uma volta de 180 graus para nascer o Almo.
Daniel, arquitecto de profissão, projectou a nova cara e o conceito que hoje brilham elegantes e sofisticados – nem o enorme tronco de eucalipto em destaque no meio da esplanada perturba isso, pelo contrário.
Apesar de ter aberto como espaço também de pequenos-almoços, o Almo está agora mais focado em refeições como o almoço e o jantar, dando sempre destaque aos produtos portugueses, da região, que sob a batuta do chef Carlos Santos se transformam em pratos como o biqueirão com picles e maionese de alga, a tomatada alentejana com ovos a baixa temperatura e requeijão ou o arroz caldoso com polvo, cogumelos e mel.
O vinho também está em especial evidência, graças a uma carta sofisticada onde não faltam referências nacionais e da região, muitos deles de produção biológica ou de baixa intervenção.
Almo Comporta
Rua do Comércio, 1, Comporta (Alcácer do Sal)
Das 12h00 às 22h30. Terça e quarta, até às 17h30. Encerra à segunda
Tel.: 265497577
Preço médio: 35 euros
Clássico é clássico
É impossível falar da zona da Comporta sem referir o Dona Bia. Esta casa à beira da Nacional 261, na localidade de Torre, tem uma história com quase 40 anos, com várias protagonistas.
Maria de Jesus, nascida e criada por estes lados, decidiu abrir o restaurante – na altura, chamava-se apenas Bia – sozinha, contando apenas com a ajuda de familiares e da dona Adélia, a cozinheira que era vizinha da mãe. Focando-se, desde então, nos deliciosos arrozes caldosos de coentros, por exemplo, com delícias crocantes como os filetes de peixe-galo ou as pataniscas, esta casa foi ganhando uma fama incomparável.
Quando Maria – a quem sempre chamaram Bia, sem que ela saiba bem porque, já que não tem Beatriz no nome – percebeu que sozinha não conseguia gerir o restaurante e os seus dois filhos, decidiu arrendá-lo a Paula Morgado, que supostamente juntou o “Dona” no letreiro e, ao fim de vários anos, comprou mesmo o restaurante – e hoje é ela quem está ao leme.
Dona Bia
Estrada Nacional 261, Torre, Comporta (Alcácer do Sal)
Tel.: 265497557
Das 12h15 às 15h30 e das 19h30 às 22h30. Domingo e segunda, só almoços. Encerra à terça
Preço médio: 35 euros
Este artigo foi publicado no n.º 5 da revista Solo.