Os estalos aos filhos são apanágio dos pais divorciados?

Obrigar um filho a testemunhar contra um pai ou uma mãe por um estalo circunstancial, e a passar por todo o trauma que necessariamente estes momentos provocam é, na minha opinião, um maltrato.

Foto
@designer.sandraf

Querida Ana,

Um pai deu uma bofetada num filho de 13 anos.

Um pai deu uma bofetada num filho de 13 anos, em frente dos amigos.

Um pai, desesperado de ansiedade porque há uma hora e meia não sabia do filho, que não chegou da escola como combinado e não atendia o telefone, quando finalmente o encontrou a jogar futebol com os amigos, deu-lhe uma bofetada.

Um pai que deu uma bofetada num filho de 13 anos, num momento de desespero, pediu-lhe logo desculpa, que o filho não só aceitou, mas também a pediu.

Ana, à medida que vamos declinando a história, contada em primeira mão pelo PÚBLICO com o rigor que o caracteriza, a nossa percepção vai mudando, até ao ponto em que, pelo menos eu, passo a identificar-me completamente tanto com este pai como com este filho. Vejo-me, num frenesim de angústia, a disparar a mão num estalo de alívio e raiva no exacto momento do reencontro — lembras-te daquela vez que não me tinhas dito que ias ao cinema e não atendias o telefone, como estive quase, quase?...

E, pondo-me no lugar da criança, também encontro experiências parecidas na minha adolescência, como no dia em que perdi o autocarro da escola, de propósito, para ver se conseguia andar de Belém à Estrela, espantando-me por encontrar a minha mãe preocupadíssima porque, imagine-se!, eu não tinha calculado que o percurso a pé demorava mais duas horas do que de carro.

Mas as minhas histórias felizmente não chegaram aos jornais, telejornais, nem suscitaram atentados nas redes sociais, porque não foram a tribunal. Ana, este caso foi. E um tribunal de primeira instância condenou o pai a uma multa de 720 euros, pelo crime de ofensa à integridade física simples, afirmando que “sabia que agredir o menor não deixava de ser uma conduta ilícita e censurável”, e lembrando que desde 1977 a legislação “substituiu” o chamado “poder de correcção”, pelo respeito mútuo. Considerou, ainda, que não é tolerável que as crianças e os jovens possam ser agredidos sem que o agressor sofra qualquer tipo de punição.

O Tribunal da Relação, no entanto, absolveu-o, por considerar, basicamente, que tinha sido uma palmada pedagógica, porque foi dada por um pai que pretendeu corrigir um filho.

Mas sabes qual foi, no meio disto, a primeira pergunta que me ocorreu? Exatamente, de onde veio a queixa? Quem é que pretendeu jogar na fronteira que persiste, e a meu ver bem, entre inadmissíveis “castigos corporais”, e um estalo que sai uma vez, num momento de desespero?

A notícia do PÚBLICO não explica, mas refere, a dado momento, que o pai atribuiu o “desaparecimento” do filho à ex-mulher, permitindo presumir um clima de litigio, e eu, fazendo um “google rápido”, que vale obviamente o que vale, encontrei aquele que julgo ser o caso anterior a este das bofetadas parentais no banco dos réus, com acórdão de 2020, e que resulta de uma queixa contra uma ex-mulher, uma mãe de um adolescente de 15 anos que lhe deu um estalo no meio de uma discussão acalorada — diz a notícia que o jovem não voltou até hoje a casa da mãe, preferindo ficar a viver com o pai.

Ana, espera, estou absolutamente segura de que os estalos e os puxões de orelhas dos pais e mães deste país não são, seguramente, apanágio de divorciados, mas julgo que era importante estudar se aqueles que chegam a tribunal provêm de contextos de graves litígios familiares. Porque, convenhamos, obrigar um filho a testemunhar contra um pai ou uma mãe por um estalo circunstancial, e a passar por todo o trauma que necessariamente estes momentos provocam é, na minha opinião, um maltrato. Pior do que um estalo.

E aí fico preocupada, muito preocupada, com o bem-estar destas crianças ou adolescentes — será que Ministério Público e juízes têm isto em conta quando lidam com estes casos, será que vão mais além na protecção destes miúdos? E será que há consequências para quem faz estas queixas que, no final, um tribunal superior considera sem razão de ser?

Esta carta já vai longa, deixo para uma próxima a discussão sobre as palmadas supostamente pedagógicas, e aos termos que as leis e as decisões judiciais ainda usam e que me deixam tão desconfortável.

Beijinhos


Querida mãe,

Partilho totalmente da sua indignação sobre como é que este caso foi parar a tribunal! Em relação a de onde veio a queixa, das duas uma:

Uma. Ou é, de facto, sintoma de uma discórdia grave entre um casal, eventualmente mais uma “prova” para usar num outro processo e, se assim for, preferia ver as pessoas a discutir as barbaridades que se passam nos tribunais quando os pais se digladiam sem escrúpulos pelos filhos, esquecendo o superior interesse das crianças;

Duas. A queixa partiu de alguém que assistiu à cena. E aí talvez tivesse sido mais sensato, e certamente mais benéfico para a criança, denunciar o caso à CPCJ, ou até à escola, onde a situação poderia ter sido avaliada e resolvida com mais bom senso.

Mas tenho muito mais a dizer sobre a “palmada pedagógica” e, como imagina, não é bem, mas deixo para uma próxima carta.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários