Diogo Almeida faz toneladas de fogaças para preservar a história da Feira

Desde 1968 que a Confeitaria Castelo está na família deste produtor. De lá saem todos os anos muitas, muitas fogaças, o pão doce que a cidade celebra a 20 de Janeiro. “Adoro fazer isto”, diz Diogo.

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Diogo Almeida, da Confeitaria Castelo Nelson Garrido

A Confeitaria Castelo nasceu em 1943, na rua mais estreita de Santa Maria da Feira, e em 1968 foi vendida pela Araújo e Filhos, Lda., ao funcionário que já lá ajudava no fabrico de doçaria aos domingos. Foi assim que Rogério Portela de Almeida deixou a pichelaria e passou a focar-se na produção de fogaça, que tem Identificação Geográfica Protegida desde 2016, mas é há séculos o produto gastronómico mais simbólico da terra, pela sua história de pão doce prometido desde 1505 a São Sebastião em troca da sua protecção anual contra a peste negra.

Quando Rogério toma conta da casa, já o pequeno Diogo, seu filho, tinha dois anos. É ele o actual proprietário da confeitaria e, reconhecendo que todas as suas memórias de infância passam por lá, diz que aquela mudança de vida na carreira do pai lhe deu muito mais trabalho do que a lida das canalizações, mas também proporcionou mais segurança à família.

“Naquele tempo passava-se muita dificuldade e quem tivesse um estabelecimento destes tinha sempre o que dar de comer aos filhos”, explica. Diogo passou a andar sempre pela cozinha, aos seis anos “roubava massa crua aos pasteleiros para fazer de conta que era como os adultos”, punha-se ao lado dos grandes a “imitar tudo” o que os via fazer e foi assim que, quando eles deram conta, o rapaz “já sabia fazer fogaça sozinho”.

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As fogaças têm o seu dia maior a 20 de Janeiro nelson garrido

Na confecção desse produto, a combinação dos ingredientes é a parte mais simples, com ovos, farinha, manteiga e pouco mais, mas depois o processo torna-se gradualmente mais exigente: primeiro há que dispor a massa num rolo comprido que de seguida se enrola numa espiral em altura; seguem-se quatro cortes rápidos de tesoura no topo, para criar as saliências que lembram os coruchéus das torres do Castelo da Feira; nessa altura enche-se a pá de madeira com o máximo possível de fogaças para as fazer deslizar de uma só assentada tantas vezes quanto as necessárias para encher todo o lar do forno – no que o recorde de Diogo Almeida é 216 fogaças de 500 gramas – e depois aguarda-se pelo momento mais delicado do trabalho.

“Esta parte é que assusta toda a gente porque o forno está muito quente, é preciso tirar as fogaças uma a uma sem estragar as outras e depois, cá fora, directamente na massa a escaldar, afastamos com as mãos as quatro torres do topo, para abrirmos a parte do meio e ela cozer melhor”, revela.

Nem todos os fabricantes executam essa etapa, por recearem queimar as mãos e não quererem acrescentar mais tempo à cozedura, mas o dono da Confeitaria Castelo não prescinde dela porque acredita que, juntamente com o forno a lenha, é esse detalhe que faz a diferença no sabor e densidade da fogaça.

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Diogo Almeida, da Confeitaria Castelo nelson garrido

O procedimento verifica-se mesmo por altura do 20 de Janeiro, que, sendo o dia da Festa das Fogaceiras e feriado municipal em Santa Maria da Feira, é o período de mais azáfama na confeitaria. A três horas e meia cada fornada, a data implica muitos dias em volta do forno e só quem faz encomenda prévia tem direito a fogaça do próprio dia.

“É uma época de muito trabalho e fico hiperdependente dos amigos que me vêm ajudar, mas o que fazemos nestes dias aguenta a firma o ano inteiro, até nos meses em que a facturação não dá para pagar a luz”, assegura Diogo, assumindo-se “cansado” ao fim de tantos anos na profissão, mas garantindo continuar a retirar dela o mesmo entusiasmo de sempre. “Adoro fazer isto e ainda acho que a época das Fogaceiras, apesar de ser de muito trabalho, ainda é a melhor para se comer fogaça, sobretudo a de quatro quilos e meio, que é a mais saborosa por ficar tanto tempo no forno a apurar os sabores todos” – antes de ser cortada à mão, sem faca, para se potenciar a textura do seu miolo espiralado.

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As fogaças em produção na Confeitaria Castelo nelson garrido
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As fogaças em produção na Confeitaria Castelo Nelson Garrido

Defendendo que muitas bancas de rua e até estabelecimentos fixos vendem produto que desrespeita o genuíno, Diogo recomenda, contudo, cautela na compra, tal como o pai fez com o icónico jornalista Fernando Pessa (1902-2002) nos primórdios da televisão portuguesa. “O Pessa veio à Feira fazer uma peça, entrevistou um vendedor de rua e o meu pai, quando viu aquilo, achou que ele foi enganado. Então arranjou o contacto dele, enviou-lhe uma fogaça a sério e o Pessa gostou tanto que veio cá no mês a seguir com uma equipa da RTP e fez hora e meia de reportagem”, recorda. “Acabaram os dois amigos, com o Pessa a passar férias em nossa casa e a tornar-se padrinho da Confraria da Fogaça e um dos seus fundadores honorários. Ele tinha sempre fogaça como bolo de aniversário e, quando fez 100 anos, também foi com uma que lhe cantaram os parabéns.”

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As fogaças em produção na Confeitaria Castelo nelson garrido

Pelos escritórios e salas da confeitaria e da sua residência, Diogo Almeida vai guardando fotografias desses tempos, assim como câmaras fotográficas que colecciona para usar no tempo livre. Falta-lhe uma Leica antiga, mas exemplares vintage da Zeiss, Zenit, Nikon e outras marcas partilham espaço com imagens a preto e branco de Santa Maria da Feira, quando as estradas eram de terra, os carros a cavalo e o povo de uma pobreza sem paralelo na actualidade nacional.

É verdade que o custo de 30 dúzias de ovos passou de 28 para 60 euros e que só “especulação pura” justifica que uma palete de farinha tenha aumentado de 970 euros para 2570, mas a Confeitaria Castelo mantém-se leal à fogaça e evita aumentar-lhe o preço durante as festas porque, embora a peste bubónica já não dizime populações, a solidariedade continua a fazer tanta falta agora como na Idade Média.

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As fogaças em produção na Confeitaria Castelo pela equipa de Diogo Almeida nelson garrido

“A fogaça começou por ser dada ao santo para a Igreja a distribuir pelas pessoas mais pobres, como um remédio ou suplemento, e antes do 25 de Abril havia gente que, para comprar uma, ia tirar ao que comia”, conta Diogo. “A minha avó paterna, por exemplo, guardava fogaça numa gaveta, num fundo falso, durante um ano ou mais. Naquele tempo havia uma sardinha para três e o resto era o que a terra desse, portanto, quando alguém ficava doente, ia-se àquela fogaça escondida e tirava-se um bocadinho para lhe dar. Como era um alimento rico, com mais nutrientes, por muito seca que estivesse ajudava na mesma a combater a fraqueza e deve ter curado muita gente.”

E é por isso que sozinha ou com manteiga, cozida com chocolate ou frutos secos, acompanhada por presunto ou queijo da serra, a fogaça não é só um regalo imediato, mais ou menos fugaz. É uma manifestação de respeito, que foi temperada com fé e deixada a fermentar com História. Saída do forno, então, corta-se sem faca e serve-se como memória.

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