De fogaceira em fuga a pilar da festa contra a peste negra

Durante anos, Paula Magalhães foi uma das meninas a desfilar com a fogaça à cabeça na festa maior de Santa Maria da Feira. Hoje zela para que nada falhe na procissão que este domingo volta a sair à rua.

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Adriano Miranda

Este domingo celebra-se em Santa Maria da Feira a Festa das Fogaceiras, em que centenas de meninas vestidas de branco desfilam pelas ruas transportando à cabeça uma fogaça, cumprindo assim o ritual com que há 514 anos consecutivos a terra vem agradecendo a São Sebastião pela sua protecção contra a peste negra. O manual distribuído pelas escolas é claro: “Para que a tradição seja preservada, é fundamental que o traje da fogaceira seja integralmente branco – não bege nem pérola – e que privilegie a beleza da simplicidade. É composto por vestido, meia-calça, luvas e sapatos brancos. O casaco e os acessórios para o cabelo, também eles brancos, são opcionais." 

Pode parecer coisa fácil de gerir, mas, considerando que cada edição da cerimónia envolve 200 a 600 crianças cuja indumentária só é plenamente conhecida momentos antes do primeiro cortejo do dia, há sempre surpresas e imprevistos com que lidar. Crianças com leggings coloridos acabados de comprar fazem birra por não poderem exibi-los no desfile, pezinhos que chegaram em sapatilhas com efeitos luminosos na sola experimentam vários sapatos da reserva até encontrarem o número certo, meninas que envergam perucas de Carnaval para simularem o cabelo comprido que não têm são penteadas com travessões ou totós minimais para se mostrarem mais femininas.

Durante 40 anos, foi Fátima Magalhães (1934-2014) que, recorrendo à sua experiência de ex-fogaceira na meninice, coordenou esse trabalho no guarda-roupa da festa. Começou como costureira a fazer arranjos nos bastidores, passou entretanto a angariadora de doações que permitiram constituir uma reserva de vestidos, calçado e acessórios para emprestar a meninas cujas famílias não possuíam a indumentária exigida, e acabou reconhecida como coordenadora do dress code do evento, uma espécie de mordoma do outfit oficial da festa. Quando faleceu, em 2014, já tinha deixado uma sucessora que a vinha acompanhando há mais de 20 anos: a sua filha Paula Magalhães, que, embora trabalhando diariamente como educadora de infância, por esta altura do ano dedica as suas folgas à festa contra a peste bubónica. Sempre como voluntária, é ela quem actualmente percorre escolas a explicar às crianças a história das fogaceiras, angaria vestidos para emprestar a quem não os tem, faz arranjos de costura nessa e outras peças do traje das meninas e, a cada 20 de Janeiro, ajuda-as a vestirem-se de branco, prende-lhes à cintura os laços de cetim nas cores do município e ensina-as a equilibrarem na cabeça não apenas as fogaças, mas também peças maiores como a réplica do castelo ou o tabuleiro com as velas da procissão. “Dignidade” é o valor que procura para o traje dessas jovens senhoras; “respeito” é o que espera do olhar de quem as vê passar nessa indumentária.

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Máquina de costura para confecção de vestidos e para fazer os arranjos necessários nos vestidos do fundo de empréstimo às meninas participantes Adriano Miranda

“Não me consigo imaginar sem a Festa das Fogaceiras”, confessa Paula Magalhães. “Quando eu comecei, o traje era muito diferente porque íamos só com meia até ao joelho e a saia era muito mais curta, como se usava nas comunhões daquele tempo, mas, mesmo assim, não havia frio que me pegasse porque andava tão entusiasmada que aguentava qualquer coisa – e ainda hoje sinto quase a mesma coisa.”  

Começou por desfilar fogaças aos seis anos e, à medida que foi crescendo, passou a transportar as chamadas “peças maiores”, despedindo-se dos cortejos coroada pela réplica do castelo, que “naquele tempo pesava 12 quilos e agora é feita de um material muito mais leve, para não ultrapassar os cinco”. Dos corsos públicos para os bastidores, onde ajudava a mãe a preparar vestidos e a aprumar as meninas que lhe sucederam no desfile, foi uma transição natural. “Uma espécie de herança de família”, admite. Se Paula tivesse escolha, contudo, não era como costureira e mordoma da festa que mais se envolveria no evento.

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Fotografia de Fátima Magalhães, mãe de Paula e aquela que iniciou a tradição familiar de coordenação do guarda-roupa das fogaceiras Adriano Miranda

É certo que houve um ano em que teve um acidente de viação a caminho da cerimónia e que só a custo os enfermeiros a conseguiram reter para lhe suturarem um joelho, tanto teimava ela em trocar o hospital pelo aperaltar das meninas; mas, por muito que a cada 20 de Janeiro a alegria de materializar uma tradição com mais de 500 anos se continue a sobrepor a tudo, inclusive à memória da mãe na labuta especial que era a da festa e à saudade que essas recordações lhe despertam, o que Paula Magalhães queria mesmo era regressar aos seus tempos de catraia apenas por tempo bastante para percorrer de novo a passerelle contrita tão própria das fogaceiras. “A coisa mais bonita há-de ser sempre participar na procissão e já por isso é que eu menti nos últimos desfiles que fiz”, revela. “A certa altura passei a dizer que tinha sempre 14 anos, mas, na verdade, desfilei até aos 18. Tinha é vergonha de admitir que, mesmo já sendo tão grande, ainda não queria deixar de fazer parte da festa.”

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Medalha que o Município de Santa Maria da Feira atribuiu postumamente a Fátima Magalhães pelo seu contributo para a Festa das Fogaceiras, sempre em regime de voluntariado Adriano Miranda
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