Desconfiança crónica, o primeiro adversário de Roberto Martínez

Para quem vive com o travão de mão accionado, a desconfiança é uma forma de estar.

Agora que está solucionado o enigma em volta do sucessor de Fernando Santos, o país desportivo já pode dedicar-se ao passatempo favorito de encontrar imperfeições no novo seleccionador e no processo de escolha que o conduziu ao cargo. A arte da apreensão e da desilusão estrutural fazem parte do ADN do adepto português, desconfiado face ao pragmatismo dos resultados e inclemente perante opções que não repliquem as suas. Não é defeito, é feitio.

A primeira embirração é fácil de detectar: Roberto Martínez não é português. Numa conferência de imprensa em que Fernando Gomes não se expôs a mais do que três perguntas, o presidente da FPF admitiu contactos com outros treinadores, presumivelmente portugueses — e um deles, presumivelmente, com os nomes José e Mourinho no cartão de cidadão. O único que recebeu uma proposta, garante, foi Martínez, o que nos leva a concluir que as primeiras manobras exploratórias, junto de outros alvos, não terão tido grande acolhimento.

Essa está longe de ser uma questão central, porém, até porque o sucesso desportivo da selecção não se mede pela ordem dos registos das chamadas do telemóvel de Fernando Gomes. Importa, antes, perceber o que pode trazer o catalão ao futebol português, para além de um calendário competitivo preenchido aos comandos de uma selecção de alto nível e alguma experiência na alta-roda (Europeus, Liga das Nações, Mundiais).

Olhando para o passado recente, e para a forma como foi moldando a ideia de jogo, diríamos que Roberto Martínez tem mostrado habilidade na gestão da dimensão estratégica, alguma flexibilidade na escolha do sistema (e atentemos aqui também no Everton e no Wigan) e um exercício prolongado de gestão de um balneário complexo. Na Bélgica, privilegiou a maturidade e o conhecimento das rotinas na escolha de jogadores-chave (e errou recentemente em casos como o de Eden Hazard, por exemplo), com resultados diferentes, em diferentes contextos e períodos.

Aqui podemos encaixar uma segunda embirração, a ausência de títulos relevantes. Com uma carreira dividida quase a meio entre a realidade dos clubes (nenhum deles de topo) e da selecção, será no mínimo atrevido enveredar por esta via. É verdade que dispôs da melhor geração do futebol belga das últimas largas décadas, é verdade que falhou clamorosamente no Mundial do Qatar, mas também é certo que elevou a Bélgica ao topo do ranking da FIFA, mantendo-a por lá entre Setembro de 2018 e Março de 2022, já depois de ter arrecadado o bronze no Mundial da Rússia.

Talvez com esse resultado em mente, desta feita Fernando Gomes foi expedito e cirúrgico no caderno de encargos que apresentou a Martínez: “Estar sistematicamente nas meias-finais das grandes provas internacionais”. É um sinal encorajador que, de uma vez por todas, sejamos capazes de traçar e assumir publicamente objectivos concretos, secundados pela qualidade das condições e da matéria-prima disponíveis. E é igualmente positivo que, logo à partida, o novo seleccionador saiba com o que (e com quem) está a lidar.

Na apresentação, Roberto Martínez vestiu o fato de aluno aplicado. Na avaliação oral, na Cidade do Futebol, tocou as notas que o professor queria ouvir, ao manter as portas abertas a todos (com Cristiano Ronaldo à cabeça), ao elogiar o antecessor (sublinhando que é preciso construir em cima do que foi feito), ao mostrar algum conhecimento da realidade nacional (quando aludiu ao contingente da diáspora), ao dar um sinal à formação (mostrando-se atento aos mais jovens). E, claro, ao esbanjar empatia, elogios e vontade de escrever sucesso em português.

As agruras começam a partir de agora, com a necessidade de desmontar a terceira embirração, mascarada de suprema das ironias — o facto de se ter contratado o seleccionador de uma equipa que sofreu uma derrota mais pesada do que a de Portugal frente a Marrocos (0-2), no Mundial. Para quem vive com o travão de mão accionado, a desconfiança é uma forma de estar. E só o próprio Martínez, com vitórias e exibições a condizer, poderá ir derrubando o muro, tijolo a tijolo.

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