Needle spiking, pinchazos ou as picadas com seringas à noite: os factos para além dos mitos

A emergência e discussão mediática em torno do needle spiking é problemática e assenta numa série de mitos da violação particularmente penalizadores para as mulheres e pessoas queer que saem à noite, enquanto potenciais alvos de violência sexista.

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Entre Setembro e Outubro de 2021, na sequência da reabertura do sector do lazer nocturno, começaram a surgir na Irlanda e no Reino Unido relatos de incidentes que envolviam a injecção não-consentida de substâncias psicoactivas para facilitar a perpetração de violência sexualizada. O fenómeno, internacionalmente conhecido como needle spiking ganhou destaque nos media internacionais que, através de coberturas mediáticas alarmistas, exponenciaram o número de denúncias e reforçaram a política do medo nas saídas à noite, principalmente entre mulheres. É sem surpresa que, depois da onda de alarme se alastrar a outros países da Europa central e, mais recentemente a Espanha, verificamos que ela chega também a Portugal.

A emergência e discussão mediática em torno do needle spiking é problemática e assenta numa série de mitos da violação particularmente penalizadores para as mulheres e pessoas queer que saem à noite, enquanto potenciais alvos de violência sexista. Na qualidade de profissionais e activistas na área das drogas e feministas interseccionais, tencionamos oferecer uma análise informada e ancorada em evidências (ou na falta delas) sobre needle spiking. Por um lado, pretendemos conter a onda de alarme social e de medo e, por outro, (re)focar a discussão na cultura patriarcal como determinante de violência sexista. Mas, afinal, o que precisamos de saber acerca deste fenómeno?

1) Não existem “drogas da violação”

A possibilidade de uma bebida “ser minada” (consumo involuntário resultante da administração não-consentida de substâncias psicoactivas) com uma “droga da violação” é um mito antigo, extremamente problemático, que assombra principalmente as mulheres desde as suas primeiras saídas à noite. Isto não significa que não existam pessoas que, de forma premeditada, usam determinadas substâncias psicoactivas para facilitar o exercício de violência sexualizada sobre a/s pessoa/s que escolhem como alvo.

No entanto, é importante sublinhar que as drogas não violam. Considerar as drogas e os seus efeitos psicofarmacológicos como a causa da violência sexualizada desvia a nossa atenção do foco do problema: o agressor e o sexismo estrutural. Para além disso, promove uma cultura do medo que incentiva as mulheres a permanecerem hipervigilantes e atentas a esse “perigo invisível”, protegendo os seus copos, controlando as suas bebidas, como forma de evitarem a violência que sabem que podem sofrer. Para além de as tornar unidireccionalmente responsáveis pela sua protecção, este mito promove também uma falsa percepção de segurança porque, num contexto de sexismo estrutural, proteger as bebidas não é suficiente para evitar violência sexualizada.

2) GHB - o bode expiatório

Tradicionalmente, o GHB (gamma hydroxybutyric acid) tem sido descrito como a “droga da violação” por excelência. A referência ao GHB (ou “ecstasy líquido”, como é designado em algumas peças mediáticas) surge novamente no contexto de needle spiking. No entanto, esta associação é extremamente dubitável.

O GHB é uma substância psicoactiva com efeitos euforizantes e depressores que tem vindo a ser utilizada por algumas pessoas para fins lúdicos. O GHB é também utilizado como medicamento para a narcolepsia do sono. Apresenta-se geralmente na forma de líquido, e as doses activas variam entre os 0,5 e os 5 ml. Por ser activo em doses tão sensíveis, é comum utilizar-se uma seringa graduada (sem a agulha) para facilitar a medição do líquido, que é posteriormente ingerido numa bebida. Podemos até especular que o uso de seringas para dosear o GHB possa estar relacionado com a crença de que a injecção é uma nova forma de “minar” alguém em saídas à noite.

A detecção de GHB no sangue é extremamente difícil, podendo apenas ser feita poucas horas após o seu consumo. Este facto faz com que seja difícil de provar que o GHB esteve envolvido em casos de spiking. Importa ainda sublinhar que outras substâncias (incluindo o álcool) podem ser utilizadas, de forma premeditada ou oportunista, para submeter ou diminuir a capacidade de reacção de uma pessoa a um avanço sexual que pode não desejar. Diabolizar uma substância implica, necessariamente, estigmatizar o grupo de pessoas que a consomem, expondo-as a mais riscos e a um maior escrutínio social. Mais uma vez, a raiz do problema não são as substâncias.

3) A submissão química não cabe dentro de uma seringa

Na prática, poucas substâncias com propriedades sedativas são activas em doses baixas o suficiente para serem administradas através de uma injecção rápida e discreta ou de uma “picada”. Em particular, a dose necessária de GHB injectável para sedar alguém seria impraticável por esta via de administração. Restam apenas algumas benzodiazepinas ou opióides de acesso difícil e restrito. No entanto, ao contrário do GHB, estas substâncias permaneceriam no organismo mais tempo, o que tornaria improvável que não fossem detectadas.

Para além disso, a injecção de substâncias implica conhecimentos técnicos específicos, pelo que dificilmente alguém leigo conseguiria administrar de forma precisa e discreta substâncias injectáveis num ambiente com pouca luz e sobrelotado numa pessoa em movimento.

4) A violência sexualizada também acontece na sequência de consumos voluntários

De acordo com os dados do projecto Sexism Free Night, a violência sexualizada em ambientes de lazer nocturno é fundamentalmente experienciada por mulheres e pessoas queer, sendo principalmente perpetrada por homens cisgénero. Das pessoas respondentes que afirmam ter experienciado violência sexualizada, uma maior proporção refere que a mesma foi oportunista, considerando que alguém se aproveitou da sua vulnerabilidade na sequência de consumos voluntários (mulher cisgénero: 32,7%; pessoa transgénero ou com identidade de género não binária: 26,5%; homem cisgnénero: 11,4%). Uma menor proporção de respondentes referiu que a sua experiência de vitimação sexual resultou de spiking, e que o agressor planeou usar substâncias sem o seu conhecimento para facilitar a agressão (mulher cisgénero: 9,1%; pessoa transgénero ou com identidade de género não binária: 9,7%; homem cisgénero: 3,3%).

Neste sentido, podemos assumir que uma ênfase exclusiva na violência sexualizada facilitada por spiking invisibiliza o grupo de pessoas cuja capacidade reduzida de reacção resultante de consumos voluntários prévios foi usada como oportunidade pelo seu agressor. Contribui também para o reforço de mitos da violação penalizadores para as pessoas que consomem substâncias psicoactivas. Para além de cristalizar o mito de que o agressor sexual é um perverso desconhecido “vindo do nada” (quando as evidências demonstram que, mesmo em ambientes de lazer nocturno o agressor é alguém da rede de contactos da pessoa vitimada), alimenta distinções problemáticas das vítimas de violência sexualizada.

Em ambos os casos, a pessoa sofreu violência sexualizada e ambas as tipologias incorporam a componente de ausência ou redução da resistência por parte da vítima, ao mesmo tempo que se distinguem pela existência (ou não) de premeditação por parte do agressor. No entanto, à luz da lente patriarcal, uma vítima de spiking tende a ser encarada como uma “vítima credível”, enquanto a vítima com consumos voluntários prévios de álcool ou de outras substâncias psicoactivas é vista como menos credível porque “se pôs a jeito”.

5) É terrorismo sexual

Tendo em conta o descrito e o facto de o needle spiking apresentar contornos mitológicos, podemos considerar que o alarme social em torno deste fenómeno promove a “genderização” do medo entre as pessoas que saem à noite. De acordo com a teórica feminista Carole J. Sheffield, o terrorismo sexual é um mecanismo de poder patriarcal que, através do medo, promove o controlo e a submissão social das mulheres no espaço público. Neste contexto, o needle spiking pode ser considerado como uma narrativa de violência efectiva e/ou implícita que enquadra todas as mulheres como potenciais alvos de violência quando saem à noite. Por esse motivo, não é de estranhar que algumas mulheres receiem sair à noite, permaneçam hipervigilantes ou que entrem em pânico quando sentem uma “picadela” nos seus corpos.

6) É preciso mudar a abordagem – da política do medo às políticas de cuidado

Antes de mais, é necessário apoiar e credibilizar as pessoas que afirmam ter experienciado needle spiking, disponibilizando o acesso aos serviços de saúde e análises toxicológicas adequadas. O que se tem verificado em alguns países é que o acesso a estes exames é difícil, muitas vezes negado e, quando são realizados, a metodologia de teste varia, dificultando a obtenção de evidências realistas e comparáveis entre casos.

Pode também ocorrer que a pessoa evite “admitir” o consumo de uma determinada substância, quer pela cultura de culpabilização da vítima quer para evitar possíveis consequências legais, o que torna ainda mais difícil a interpretação dos resultados. Uma boa prática recente foi a tomada de posição do Governo da Catalunha. Através de uma estratégia integrada e coordenada, implementou um protocolo de Profilaxia Pós-Exposição ao VIH e análises toxicológicas urgentes para pessoas que referem ter experienciado pinchazos (conceito espanhol equivalente a needle spiking), com posterior encaminhamento para serviços de apoio psicológico. A estratégia envolve também representantes do sector do lazer nocturno no desenvolvimento de abordagens preventivas e inclui uma recomendação para que os meios de comunicação social informem, sem criar alarme social e respeitando a privacidade das pessoas afectadas.

Finalizamos, sublinhando que a percepção de ter sido vítima de needle spiking pode acarretar trauma e agravar a experiência de medo. Credibilizar a vítima implica credibilizar as suas experiências de medo, seja este relacionado com uma experiência efectiva de needle spiking ou desencadeado pelo terrorismo sexual amplificado pelos media. A Kosmicare tem trabalhado activamente no desenvolvimento de protocolos de actuação que permitam lidar com situações de violência sexista em estabelecimentos de lazer nocturno e festivais de Verão e apoiar as suas vítimas.

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