Liberalismo e Cidadania

Na Constituição de 1822 não se previa, por exemplo, o direito de associação e isso não é casual. Depois de feitas as leis, o debate político estava fechado e deixava de ser legítimo debatê-las.

Na edição do PÚBLICO de 13 de fevereiro de 2022 anunciou-se a continuação das comemorações da Constituição de 1822. O jornal destaca das palavras do seu coordenador Guilherme Oliveira Martins que com a primeira Constituição, em 1822, passámos [sic] de súbditos a cidadãos.

A comemoração é quase sempre uma atividade presentista e que tem propósitos de pedagogia política. Nesta comemoração oficial do Bicentenário todos os protagonistas citados são, aliás, homens do Direito e a visão é a do chamado Direito Constitucional. Felizmente, alguma complexidade é agora reconhecida em resposta à questão da ausência de condenação da escravatura pelos primeiros liberais. Mas essa complexidade não é reconhecida no que diz respeito à perspetiva liberal sobre a desigualdade social como uma desigualdade natural.

A noção de cidadania pode servir para guiar-nos na compreensão do que não está neste primeiro liberalismo.

A oposição entre a condição de súbdito e a de cidadão tem sentido se a considerarmos como o rompimento com a imagem organizadora do rei como pai que tutela os que são incapazes de autogoverno. Convirá contudo ter em conta que essa tónica no poder paternal era uma evolução recente das monarquias europeias e distanciava-se da imagem da monarquia temperada, que os liberais reclamarão como inspiradora. Cidadania, por seu lado, remete-nos para a pertença ao estrato superior da cidade e para uma hierarquização social diversa, a de uma comunidade de próximos, da que enforma o espaço do reino, entre o pai e seus vassalos. Cidadão é aquele que tem a possibilidade de alguma decisão sobre o governo da cidade.

O que é cidadania na Constituição de 1822?

A nova ordem constitui a passagem no vértice da autoridade do rei para a nação. Em vez de um pai que permite uma ampla margem de arbítrio para todos os indivíduos que atuam em seu nome e que se esconde por detrás dessa autoridade sem evidentes balizas, o poder passava a decorrer de uma autoridade que seria guiada pelo bom senso dos homens e, por isso, razoável e, sobretudo, assente na procura de benefícios gerais e não de vantagens particulares a coberto do exercício de cargos e postos.

O projeto constitucional era o dar uma resposta à desconfiança sobre a ação dos governantes em geral. As queixas dos lavradores proprietários recaíam sobre os tributos e sobretudo sobre as vexações sofridas a pretexto da sua cobrança. O objetivo seria retirar a obscuridade à redação das leis e impedir a condução dos assuntos pelos propósitos inconfessáveis dos “ministros”.

Mas, praticamente, o exercício da cidadania ficou limitado a uma pequena parte da população. A grande parte estava dele “naturalmente” afastada. Conforme a maior ou menor extensão do voto, a sua participação reduzia-se à escolha guiada dos representantes. Na Constituição de 1822 não se previa, por exemplo, o direito de associação e isso não é casual. Depois de feitas as leis, o debate político estava fechado e deixava de ser legítimo debatê-las.

Economicamente, os liberais foram liberais no âmbito em que isso lhes era conveniente e não foram naquilo que fizesse perigar os seus interesses, como nos casos do o Brasil ou da proteção do mercado interno. O objetivo é a proteção dos lavradores e negociantes nacionais. Por exemplo, a garantia de um preço dos cereais que sustentasse a atividade dos agentes nacionais no espaço que seria desocupado pela proibição da importação de cereais para a cidade de Lisboa. A antiquíssima política do pão barato era condenada.

No projeto, os lugares de administração tornando-se neutros – porque interpretavam o interesse geral dos proprietários expresso na lei e não os interesses individuais dos que detinham esses lugares – libertavam-se as forças para a estruturação de uma sociedade de mercado.

Respeitava-se a suposta ordem natural da hierarquização dos homens, feita de acordo com a superioridade que se evidenciava na propriedade e na riqueza. Esta opunha-se a uma hierarquia artificialmente solidificada como era a da velha nobreza hereditária.

Na verdade, a legitimidade superior que se esperava que tivessem as ordens por decorrerem da da vontade geral deduzida pelos sábios reunidos não teve o efeito desejado. A experiência liberal de 1820 foi de curta duração e o regime vitorioso em 1834 virá a ter uma primeira fase de grande instabilidade por efeito dos conflitos entre fações.

Anos depois, a monarquia da Carta Constitucional não efetivou o ideal da legitimidade resultante da escolha dos representantes: o governo ganhava sempre as eleições e a chave do sistema político não eram as eleições, mas o poder de dissolução da Câmara dos deputados pelo rei e desse modo a rotação de “partidos”.

A República de 1910 foi no essencial uma replicação do projeto liberal mas com a dimensão inovadora que era o plano educativo estatal em vez da anterior integração da igreja nas tarefas do Estado. Mas esse projeto teve limitada aplicação e, entretanto, a viciação da escolha dos “representantes” não foi eliminada.

Após uma longa ditadura, em que a dimensão da cidadania estava em si mesma reprimida, a Revolução de 1974-1975 fez com que a cidadania deixasse de estar limitada à escolha ritual dos representantes e passasse a fundamentar-se numa outra dimensão: a dos direitos de usufruto de bens sociais. O acesso a estes bens não se fazia através do mercado e da capacidade aquisitiva de bens essenciais na saúde e na educação ou do exercício da caridade, que mantém a pobreza. A cidadania não seria apenas a participação na escolha dos que aparecem no “mercado político” como os mais capazes para governar, dentro daquilo que está consagrado acriticamente como leis “naturais” da economia e da diferenciação social. Seria a redução da angústia decorrente do medo da insegurança e a possibilidade de se contrariar (ainda que limitadamente) os efeitos da herança social no destino dos indivíduos.

A cidadania é, em conclusão, um campo de conflito e não algo que se definiu a partir do modelo liberal.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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