Haverá mais de 6500 vítimas de mutilação genital a viver em Portugal. Pouco mais de 10% estão sinalizadas pelo SNS

O dia 6 de Fevereiro marca o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina. Em 2021, foram diagnosticados 141 casos de mutilação genital nos hospitais e centros de saúde; a maioria são mulheres adultas que foram excisadas durante a infância.

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O Hospital Amadora-Sintra é um dos hospitais que mais efectua registo de mulheres vítimas de mutilação genital Rui Gaudêncio

Entre 2014 e o final de 2021, 668 mulheres vítimas de mutilação genital feminina foram sinalizadas no Registo de Saúde Electrónico, 141 das quais no ano passado. Os números foram anunciados no 6.º Encontro Regional para a Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina, que teve lugar no sábado na Baixa da Banheira, concelho da Moita.

A secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, explica que estes casos sinalizados são, na sua esmagadora maioria, diagnósticos feitos a mulheres já adultas, referentes a situações que ocorreram na infância e fora de Portugal. Uma das prioridades a nível das políticas públicas nesta área é, portanto, cuidar destas sobreviventes, que “carecem de um atendimento e de um olhar especializado dos profissionais de saúde”, explicou a secretária de Estado.

Nos últimos anos, o Governo tem apostado no projecto “Práticas Saudáveis”, que tem promovido, numa parceria da tutela da Igualdade com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, a criação de redes em diversos territórios com populações afectadas pela mutilação genital feminina (MGF).

Este projecto tem permitido estabelecer pontes entre profissionais de saúde e organizações que trabalham directamente com as comunidades, assim como a formação de profissionais (com a promoção de pós-graduações dedicadas à MGF e saúde sexual e reprodutiva) e a criação de pontes com outras áreas como a educação, através da saúde escolar.

“Prova da eficácia desta intervenção e deste trabalho articulado”, refere Rosa Monteiro, tem havido um aumento das sinalizações na plataforma de registo de saúde electrónico: até 2018, tinham sido sinalizadas “uma média de 60” mulheres por ano; em 2019, o número saltou para 129, baixando para 101 em 2020 (com o início da pandemia); em 2021 voltou a subir para 141 diagnósticos.

A sinalização destas mulheres na plataforma é o primeiro passo para um acompanhamento adequado das complicações que o corte genital pode provocar na sua saúde. Infecções frequentes, problemas a nível do sistema urinário, dor durante as relações sexuais e dificuldades na gravidez e no parto são apenas algumas das consequências físicas encontradas nas sobreviventes de MGF, às quais se junta o impacto psicológico que esta prática pode deixar nestas mulheres.

A psicóloga Elsa Mota, da divisão de saúde sexual e reprodutiva da Direcção-Geral da Saúde (DGS), apresentou um balanço provisório dos dados recolhidos ao longo dos últimos sete anos na plataforma. Grande parte das sinalizações é feita nos hospitais, no momento do parto. A nível dos cuidados primários de saúde, contudo, o ritmo de sinalizações é bastante mais lento.

Uma das principais dificuldades no trabalho de sensibilização dos profissionais de saúde para este registo é que “é preciso estar atento e saber o que se procura para poder encontrar”, diz Elsa Mota, sublinhando a importância de mais formação de profissionais de saúde, em particular de médicos.

O relatório dos registos efectuados entre 2014 e 2021 deverá ser concluído e publicado em breve.

Investir nas comunidades

O dia 6 de Fevereiro marca o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina. Estima-se que mais de 6500 mulheres com mais de 15 anos a residir em Portugal possam ter sido submetidas ao corte genital, uma prática tradicional nefasta que afecta a vida de mais de 200 milhões de mulheres por todo o mundo.

Trata-se de um “fenómeno criminal, mas que é bem mais do que isso”, sublinha a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro. “Sabemos o cuidado que temos que manter na forma como falamos da mutilação genital feminina, que não seja estigmatizante para estas comunidades e que não reforce o discurso de ódio que temos vindo a assistir sempre que há notícias acerca deste trabalho.”

Além do reforço dos serviços públicos que dão apoio a estas populações, uma prioridade igualmente importante é trabalhar com as comunidades afectadas para erradicar a prática, que ainda afecta mulheres em território nacional.

As políticas públicas neste âmbito começaram a ganhar tracção com o primeiro plano de acção contra a mutilação genital feminina, em 2009, mas os desafios no campo da capacitação das comunidades têm sido ultrapassados de forma extremamente lenta. Ao longo da última década, em projectos pontuais, várias mulheres têm sido capacitadas no seio de associações comunitárias para poderem actuar junto das suas comunidades.

No encontro deste sábado, um dos painéis reuniu um conjunto de mediadoras interculturais na área da saúde, capacitadas para dar apoio a profissionais de saúde no contacto com pessoas das comunidades afectadas. Este apoio é importante, na medida em que as barreiras linguísticas e culturais, que muitas vezes criam dificuldades de comunicação dos médicos com as mulheres excisadas, já foram há muito identificadas como questões que precisam de ser resolvidas para uma melhor sinalização e tratamento destas vítimas.

Momentos antes, a secretária de Estado tinha notado a publicação, a 29 de Janeiro, do novo perfil de mediador/mediadora intercultural no catálogo nacional das profissões, num processo liderado pelo Alto Comissariado para as Migrações com a Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional. “É fundamental o reconhecimento e a legitimação deste perfil e para o reforço deste trabalho de mediação intercultural que é tão decisivo neste domínio.”

Do painel com as mediadoras ficou, contudo, um alerta: estas mulheres têm muitas dificuldades em prestar este apoio, que é feito sem remuneração a tempo inteiro, muitas vezes de forma voluntária (em alguns casos sem sequer lhes ser paga a deslocação), e que tem de ser conjugado com os respectivos empregos. “Quem está no terreno devia ser valorizado por isso”, apelou a moderadora do painel, a guineense Celisa Carvalho, assistente social da associação CRIVA.

A falta de financiamento para remuneração dos activistas comunitários e de projectos em geral é um problema que não se coloca apenas em Portugal. Para o ano de 2022, o programa conjunto da Unicef com o Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) para a eliminação da MGF escolheu como lema “Acelerar o investimento para acabar com a mutilação genital feminina”, divulgado nas redes sociais com a hashtag #InvestDontRest – “não descanse, invista!”

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