O Douro entre parêntesis

O modelo institucional de governação do negócio do vinho quase nada mudou desde o corporativismo salazarista. Quer-se governar uma região dinâmica, com dois grandes vinhos, no século XXI com os mesmos instrumentos criados para uma região cristalizada, com um grande vinho, no século XX.

O clima é áspero, os solos pedregosos, os declives acentuados, a produtividade baixa, as exigências agrícolas heróicas, o envelhecimento óbvio e as marcas de um ancestral atraso nítidas. Mas raras regiões do mundo conseguem produzir no mesmo espaço dois vinhos de classe mundial, talvez nenhuma tenha uma tão impressionante paisagem e, para lá das videiras e das uvas, o Douro produz a maior fatia da energia eléctrica do país, dos melhores azeites, os melhores tomates ou os melhores citrinos. Entre as desvantagens e o potencial pode prever-se um meio-termo entre a pobreza e a riqueza, entre o atraso e o desenvolvimento, entre as heranças do passado e as expectativas do futuro. O Douro está neste parêntesis e isso não é uma boa notícia.

A declaração do Património Mundial de há 20 anos surgiu num momento em que era possível uma outra expectativa para a região. O prestígio e o volume de negócios do vinho do Porto ganharam pontos na última década do século XX. O vinho do Douro deixara de ser uma promessa e tornara-se um activo seguro, com potencial internacional e uma ampla capacidade de crescimento. O Douro que acumulara séculos de saber empírico transformava-se com a entrada em cena dos primeiros quadros qualificados da UTAD. O vale começara a deixar de ser um campo agrícola e tornara-se também num objecto patrimonial, com o Museu do Douro a assumir um papel crucial nessa transformação que logo depois se acentuaria com os museus de Tabuaço, Pesqueira ou Favaios. O turismo ganhava lastro com todas as conquistas e acelerava.

Vinte anos depois, não é caso para dizer que tudo foi em vão e ainda menos que tudo se desvaneceu. Pela primeira vez no último século, o Douro voltou a fazer vinho em larga escala. Centenas de jovens enólogos vivem hoje nas suas vilas e cidades. Boa parte das mais-valias do negócio vinhateiro ficam no Douro e multiplicam rendimento e oportunidades. Os DOC Douro acrescentaram um valor incomensurável à região vinhateira. Mas, como é típico na história regional, nada se muda quando as coisas correm, mesmo que devagarinho. Se à superfície se percebia uma dinâmica contagiante, na profundidade das instituições permaneceu a letargia, o comodismo e a indiferença.

O Douro está no parêntesis porque o modelo institucional de governação do negócio do vinho quase nada mudou desde o corporativismo salazarista. Quer-se governar uma região dinâmica, com dois grandes vinhos, no século XXI com os mesmos instrumentos criados para uma região cristalizada, com um grande vinho, no século XX. A UTAD caiu na anomia e demorou anos de mais a assumir o seu papel de agente de desenvolvimento. As autarquias dedicaram-se a colocar cimento sobre betão e só muito recentemente perceberam o seu papel no mundo moderno. Pelo meio, as ameaças ao Património Mundial multiplicaram-se com a destruição do vale do Tua, com frequentes atentados a vinhedos históricos, com a erosão ameaçadora das vinhas com patamares megalómanos, com a destruição de muros ou com a construção de casas ou hotéis que violam a norma da beleza introspectiva e solene do vale.

Vinte anos depois, nem tudo se perdeu nem tudo se conquistou, portanto. O Douro vai subindo o muro, mas precisa da ousadia de reformas institucionais, da energia dos seus novos viticultores ou enólogos, do saber da sua universidade e do seu museu, do capital e domínio das redes comerciais das suas empresas seculares. Precisa de se envergonhar com os preços que paga aos pequenos produtores de uvas ou de vinho, de se indignar com os “reservas” com a sua indicação de origem vendidos nos supermercados a dois euros e meio, com os barcos que usam a beleza do seu rio sem deixar riqueza na região, com as empresas de energia que o colonizaram com barragens sem lá pagar impostos, com os arrivistas sempre à espreita do hotel para encher o olho, mesmo que à custa da harmonia da paisagem.

O Douro secular que resistiu a pragas, guerras e crises não abalou. Mas precisa de reflectir a responsabilidade de ser um património do mundo. Para o honrar, a mais rica região agrária do país não pode ser uma das que apresentam os piores indicadores socioeconómicos. O que resta do extractivismo de tipo colonial tem de mudar. Olhando para o Douro, para as suas vinhas, para o rio, para a paixão e saber dos que o habitam, hoje é mais fácil que nunca acreditar no fim dessa condenação. Os dias de celebração deste património único devem servir de mola para extinguir as amarras que restam.

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