Os engarrafamentos do trânsito

O efeito suspensivo do recurso para o TC é uma garantia desigual que serve a impunidade, e não a defesa. E que não tem qualquer sentido manter.

Há dias passou-me pelos olhos um título de jornal que dizia: Juíza diz que Sócrates está a fazer tudo para evitar o julgamento. Lembrei-me que, de cada vez que um caso da justiça penal mediático-dramática tropeça no caminho das pedras, um emaranhado de voltas e reviravoltas processuais sem fim nem lógica, que o juiz não consegue travar, ressuscita o tema das garantias de defesa. Não se chega a saber se as garantias são demais ou de menos: “a quente” o debate não se faz porque não se pode, “a frio” também não, porque não se quer e o tempo entretanto vai passando.

Uma das pedras do caminho de uma justiça mais compreensível, por sinal bem grande, está na regra que permite manter o efeito suspensivo do recurso para o Tribunal Constitucional (TC). Uma pessoa é condenada em primeira instância a 15 anos de prisão, a condenação é confirmada em recurso, primeiro na Relação e depois no Supremo, mas, apesar de o juízo sobre os factos, o crime e a pena estar estabilizado nas decisões de três tribunais, a sentença não transita em julgado – isto é, não pode começar a executar-se – se houver recurso para o TC. Recurso que, note-se, é já sobre a lei e não sobre o caso, discutindo-se apenas a constitucionalidade da norma aplicada e não se os factos ficaram bem provados, se o crime foi cometido e se a pena é adequada. Olhando só para este pedregulho, estou cada vez mais convencido que não se justifica manter o regime em vigor. Trata-se de uma garantia desigual e iníqua, que não prossegue qualquer princípio fundamental e cujo exercício não permite atingir fins processualmente úteis e socialmente defensáveis. Vamos ver porquê.

As taxas de justiça que se pagam no TC são caríssimas. Um recurso infundado, rejeitado por decisão sumária, do qual haja reclamação para a conferência e depois invocação de nulidade do acórdão final (isto é só o básico nos casos patológicos), pode, no limite, custar 22.220 euros e em média custa 9.400 – para além dos honorários do advogado, claro. Ora, sabendo-se que o apoio judiciário apenas beneficia pessoas praticamente sem rendimentos, entra pelos olhos dentro que só recorre ao TC quem tem muito dinheiro. Há aqui uma iníqua desigualdade de armas, uma justiça para ricos e outra para pessoas comuns.

Por outro lado, a constituição estabelece como garantias essenciais de defesa, o direito ao recurso e a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da condenação, mas não impõe que todos os recursos tenham de ter efeito suspensivo. Um balanceamento razoável entre garantias de defesa e efectividade da tutela dos bens penais admite perfeitamente uma alteração do regime em vigor. Em países como os EUA, Inglaterra, Alemanha, França, Itália e Espanha é possível, em diversos graus, executar decisões condenatórias enquanto se aguarda o resultado dos recursos, e não consta que aí o Estado de direito tenha colapsado.

Acresce que, embora não existam dados disponíveis para comprovar com exactidão o que vou dizer, a experiência de quem anda nos tribunais mostra que serão raríssimas as situações em que uma condenação em pena de prisão pode ser revertida em absolvição ou pena não privativa de liberdade em resultado do recurso para o TC. Isto quer dizer que o efeito suspensivo do recurso só serve para evitar a execução de penas de prisão injustas em situações muito marginais. Pelo contrário, o que sucede todos os dias é que esse recurso, mais os eteceteras todos dos mil incidentes que a imaginação permita e a carteira do cliente aguente, é usado apenas para atrasar o desfecho desfavorável do processo durante meses ou anos. Manter o efeito suspensivo nos recursos para o TC não cumpre, pois, qualquer finalidade relevante no processo e na administração da justiça e, pior ainda, escancara a porta ao abuso do resultado imoral. Trata-se, sem dúvida, de uma garantia que serve a impunidade e não a defesa e que não tem qualquer sentido manter.

Já sei que há quem ache que, mais engarrafamento menos engarrafamento no trânsito do caminho das pedras, devemos deixar as coisas sossegadas porque a inevitável lei da vida é como é e não há nada para mudar. Eu digo exactamente o contrário: é preciso agir. Lá em casa, quem lê e ouve uns e outros, também há-se descortinar onde está a razão.

Manuel Soares é colunista do PÚBLICO 

Sugerir correcção
Ler 8 comentários