Recorrer ou não recorrer, eis a questão

A possibilidade de recurso para o Supremo agora reconquistada vai seguramente permitir que se faça mais e melhor justiça no nosso país.

Graças a Deus e aos arguidos que não se conformaram com uma inequívoca restrição aos seus direitos de defesa, o Tribunal Constitucional (TC), no passado dia 13, declarou definitivamente inconstitucional uma sinistra reforma legal de 2013 que restringia a possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal de Justiça.

No nosso país, e reproduzindo os termos que constam da Constituição, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Mas a dimensão concreta deste direito ao recurso não é evidente, já que a mesma tem evoluído ao longo dos anos. E, verdade seja dita, no nosso país, o direito ao recurso, ao longo dos anos – apesar de haver muitas vozes que falam contra o excesso de garantismo – tem vindo a ser a cerceado por diversas razões.

Em 2013 ocorrera uma triste reforma neste aspecto: o Código do Processo Penal deixou de permitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões dos tribunais da Relação que, inovadoramente, face a uma absolvição dos arguidos ocorrida no tribunal de primeira instância, os viessem a condenar em pena de prisão efectiva não superior a cinco anos.

Até à reforma de 2013, era admissível o recurso para o Supremo quando o Tribunal da Relação, ao revogar a absolvição da primeira instância, condenasse o arguido em prisão efectiva: fosse por um dia ou por cinco anos. Isto é, o arguido tinha sempre o direito de apresentar as suas razões e vê-las apreciadas por um tribunal superior quando discordava de uma condenação em prisão efectiva.

A principal razão para este estreitar do acesso ao Supremo, em 2013, foi, prosaicamente, diminuir o volume de trabalho dos juízes conselheiros à custa dos direitos de defesa no processo penal. Em termos mais elaborados, justificou-se esta legislação com a intenção de preservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça "para os casos de maior gravidade". Parece que havia, em certas mentes, uma preocupação com a "crescente massificação do acesso à jurisdição do tribunal situado no topo da hierarquia judiciária, que deveria estar reservado para o conhecimento e decisão das causas criminais mais graves”. Também se falou que era uma forma de tornar a justiça mais célere, mas a verdade é que os maiores atrasos nos processos não ocorriam nos tribunais superiores.

Embora não tenha sido só esta reforma legislativa que restringiu os recursos para o Supremo, a verdade é que o Supremo, ao perder competências, perdeu, sem margem para dúvidas, relevância na construção e definição da nossa Justiça, o que, estou certo, era motivo de insatisfação para os próprios juízes conselheiros, apesar de terem ficado com menos trabalho.

Na verdade, estou convicto que muitos juízes conselheiros não concordavam com o corporativo estreitamento do caminho de acesso ao Supremo e estarão, agora, mais satisfeitos – embora com mais trabalho – com a possibilidade de se poderem pronunciar sobre a justiça ou injustiça da condenação de arguidos que tinham sido absolvidos em primeira instância e se vêem condenados a cumprir penas de prisão efectivas pelos tribunais da Relação.

Para chegar a esta declaração de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional considerou que “uma situação em que a uma absolvição de primeira instância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar”, o que implica um direito de recurso do arguido sobre essa matéria nova.

A decisão que escolhe a pena de prisão e define a sua medida é, nesse caso, proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente no tribunal de primeira instância, tenha havido qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido via-se, assim, confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tinha tido oportunidade de questionar em primeira instância, porque fora absolvido, e não tinha possibilidade de questionar em segunda instância, porque, surpreendido e revoltado agora com a sua condenação, não podia discutir a mesma, por lhe estar vedado o recurso para o Supremo.

A possibilidade de recurso para o Supremo agora reconquistada vai seguramente permitir que se faça mais e melhor justiça no nosso país.

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