Carta de amor ao Afeganistão

Entre a guerra e a resiliência de quem sabe o que quer e o que não quer, está sempre um sorriso doce e até infantil de quem dá todo o seu eu a quem vem por bem.

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EPA/M. SADIQ

Há coisas que não se explicam. O amor é assim. Comecei a namorá-lo ao longe quando estava nas montanhas da província do Noroeste do Paquistão. Via alguns picos das montanhas geladas lindas de morrer do Hindu Kush, enquanto lia sobre a história, a cultura, e o sal daquela terra que dizem ser um dos países mais antigos do mundo com a mesma identidade. Afeganistão, que em pashtun quer dizer a “terra dos afegãos”, e assim o é de nome e de facto, há mais de 3000 anos.

Há qualquer coisa de mágico sobre o Afeganistão. Todos os países têm o BI do seu povo e da sua terra, e o do Afeganistão é bem forte. Gente de carácter vincado, sólido e inspirador… Triste é que aos olhos de quase todo o mundo se trate apenas de um campo de batalha, quando é tão mais do que isso. Não fui à procura de mais do que o óbvio, a sua história e o seu povo, que por acaso habitam num país lindíssimo.

A sua história intercepta quase todos os grandes capítulos e civilizações da humanidade. Rota da seda, a ligação do Médio Oriente ao Extremo Oriente, o tampão entre a Rússia e o subcontinente indiano. Passagem de grandes campanhas imperialistas, desde Alexandre, o Grande, Gengis Khan e o Império Mongol, os árabes muçulmanos, os soviéticos, os britânicos… E, no entanto, nunca deixaram de ser o que são: afegãos, orgulhosos e fiéis à sua língua e identidade, inquebráveis ao longo dos tempos.

Apenas gostava que vissem o que eu vi, sentissem o que eu senti, e certamente sairiam de lá também maravilhados.

O espírito guerreiro dos afegãos impressiona. Poucas vezes senti que a expressão “antes quebrar que torcer” fizesse tanto sentido. E admiro-os por isso. A sua fisionomia não difere muito da dos latinos, morenos mas não escuros, corpos magros, mas ultra-resistentes, parecem ser feitos de uma fibra diferente — até as poucas vestes que usaram num dos Invernos mais rigorosos que já vi me impressionaram, temperaturas que facilmente baixavam aos -20ºC não lhes mandaram o moral abaixo, ao ponto de assim andarem de sandálias abertas  —, mas esta pose confiante, altiva e destemida é acompanhada na mesma dose de uma doçura e de uma sensibilidade que conquistam até os mais desatentos.

Entre a guerra e a resiliência de quem sabe o que quer e o que não quer, está sempre um sorriso doce e até infantil de quem dá todo o seu eu a quem vem por bem. Os braços fortes e corajosos que se abrem para dar o corpo às balas abrem-se também para dar os abraços mais sentidos que já recebi em toda a minha vida. Um abraço hospitaleiro, onde entre os quatro braços se sente a energia de quem jura pela sua morte que ali residem as boas-vindas, de quem no seu código de honra, depois de deixar entrar alguém na sua vida, ali ficará bem recebido para sempre. Algo tão bonito e que, infelizmente, não encontro paralelo no nosso mundo ocidental, dito civilizado.

Este código de honra dos pashtun é incomparável, e quem o sente sente-se tocado para todo o sempre. “Tu estás aqui, tu és meu amigo, tu és meu convidado… Tu ficas em minha casa, tu comes da minha comida… Eu dou a minha vida por ti!” A isto se tem chamado Pashtunwalli, “o código de vida” ou “a forma de viver dos pashtun”, e sentimos tudo isto num abraço, que nos vai conquistando, e nos deixa encantados com o seu modo de vida.

E é entre estes abraços que fazemos a nossa vida, sempre stressados ao estilo ocidental, a querer fazer tudo e mais alguma coisa para salvar vidas, e pôr o hospital a funcionar com qualidade, as nossas mentes são computadores, sempre em overload. E estes abraços trazem-nos à terra, relembram-nos onde estamos, quem é esta gente, o que é que ela sente, e o que sente por nós, uma admiração e gratidão eternas por lá estarmos a salvar os seus.

Estes abraços fazem-me morrer de saudades do Afeganistão, enquanto prometo a mim mesmo que, se a vida me correr como gostaria, um dia hei-de lá voltar.

Os motoristas, os guardas, os cozinheiros desfaziam-se em sorrisos à proporção da sua falta de inglês de cada vez que me viam, e mal sabiam eles quantas vezes me levantaram o moral, quando me sentia num poço sem fundo, pelos doentes que perdia. E percebemos que, por trás daquele coração de guerreiro, está quase sempre um homem sensível, que sente e nos sente, e com vontade de nos fazer sentir bem. São sorrisos que nos ensinam, que valem os perigos que corremos, que nos trazem a deliciosa sensação que temos tanto a aprender e que, aconteça o que acontecer, é no nosso carácter e na nossa honra que reside a magia da nossa felicidade.

E aprendi também a ser feliz nas pequenas coisas, a cada Xai, a cada conversa, e de cada vez que saboreava aquele que classifico como o melhor pão do mundo, o pão do Afeganistão, o naan (“pão” em persa/farsi), que acompanhava todas as refeições do nosso dia e era absolutamente maravilhoso. De forma oval ou rectangular, bem grosso e estaladiço, era cozido em fornos subterrâneos, ou seja, buracos no chão, bem fundos, onde a massa era colada à parede profunda, ficando fora da nossa vista. Sempre que tinha oportunidade (que era raro, dado as nossas restrições de liberdade), contemplava este incrível processo de como fazer este pão. Para muitos dos locais era alimento único, para nós que éramos “ricos”, acompanhava o keebab (carne), e toda a gastronomia local super-rica em especiarias que quase hipnotizam…. E as laranjas? Falta-me a arte da descrição para transmitir o que são as laranjas do Afeganistão, docíssimas e de casca solta, ideal para os preguiçosos como eu. Chegavam-nos ao preço da chuva, e eram invariavelmente maravilhosas. Não sei se a incrível amplitude térmica daquele país propicia o crescimento desta fruta com uma qualidade, para mim, sem paralelo, o que é facto é que adocicou a minha estada, e de que maneira, num país e numa região envoltos numa guerra terrível e numa dura realidade.

Senti que trouxe mais do que lá deixei.

Viver sem poder sair de casa é duríssimo. É triste sentir que há um país e um povo fantásticos à nossa volta e nós quase sempre rodeados por quatro paredes. O pouco que vi da cidade onde vivia (Lashkar Gah) foram as três rotas diferentes que fazíamos de carro, alternadas para que os nossos trajectos não fossem previsíveis, evitando potenciais ataques dos taliban. Mas dentro de todas estas adversidades, os pedaços de Afeganistão que nos chegavam foram suficientes para ficar apaixonado para sempre por aquele país.

Eu pouco vi, mas muito senti.

Vi Cabul. Pode parecer que estou influenciado pelo exotismo e pelo momento, mas Cabul é das cidades mais bonitas que vi na vida. Rodeada a 360º por enormes montanhas da cordilheira Hindu Kush (um braço dos Himalaias), a cidade fica como que dentro de um caldeirão ladeada de picos nevados. E lá “dentro” sentimo-nos numa capital de império de outros tempos. Avenidas imponentes, edifícios monumentais e palácios magistrais. Talvez no jardim de Babur, com mais de 600 anos de história, encontremos das maiores pérolas dos encantos afegãos. Design, requinte e simbolismo de um enorme jardim aos socalcos que vai subindo uma das ladeiras da cidade, à medida que avistamos cada vez mais cúpulas das bonitas mesquitas. Foi aqui também que até um ignorante como eu percebeu a soberba qualidade das maravilhas da tapeçaria afegã, e da beleza hipnotizante que os trabalhos com lápis-lazúli conseguem despertar em nós. Mas faltou-me ver muita, muita coisa, provavelmente quase tudo, como a mesquita azul de Mazar-e-Sharif, que é indiscutivelmente um dos monumentos mais bonitos do mundo, ou Herat, a cidade histórica tida como a capital do conhecimento.

Mas a magia da vida está nas pequenas coisas — nos sabores, nos sorrisos, nos olhares e nos abraços, e nos abraços de despedida. No dia em que me vim embora, senti uma amizade e uma gratidão eternas, que gravei na minha memória até hoje. Foram muitos os momentos em que isso aconteceu, mas houve um que me marcou em particular. Questões burocráticas com o visto fizeram-me ter de regressar a Cabul uns dias mais cedo, e no dia em que me despedi do hospital onde estive quase três meses, tinha as malas prontas sem saber se havia lugar para mim no avião da Cruz Vermelha que me levaria a Cabul, por isso não houve lugar a despedidas nem dos meus companheiros expatriados, nem da minha maravilhosa equipa de afegãos.

Quando tive a confirmação de que me ia embora, triste e já nostálgico, engoli em seco e rapidamente percorri o hospital para me despedir de quem encontrei, com fortes e sentidos abraços — alguns ficaram por dar, principalmente a enfermeiros que trabalhavam comigo no bloco operatório —, uma montanha-russa de emoções depois de uma missão tão intensa. Foi então que encontrei o Dr. Nasrullah, o chefe de serviço da cirurgia. Convivemos diariamente e nem sempre foi fácil. O Dr. Nasrullah, ao seu estilo de ditador, liderava todos os acontecimentos cirúrgicos e várias vezes chocámos, com opiniões médicas discordantes que me causaram alguma revolta, pois nunca consegui trazer a discussão ao nível da ciência, e quase sempre vencia a opinião dele, sustentada no “Eu sempre fiz assim, quem és tu para me dizer o contrário?”. Educadamente, tive de partir muita pedra para conseguir pequenos avanços: mostrava-lhe livros, imprimia documentos, provava por A + B o estado da arte da medicina, mas de pouco me valeu. Lembro-me de um dia, a propósito de um adolescente com um traumatismo cranioencefálico grave, vítima de uma bomba, em que o Dr. Nasrullah insistiu em prescrever corticosteróides e eu insisti que estavam contra-indicados. Trocámos opiniões médicas de uma forma acesa, mas ele venceu facilmente a disputa com o seu estilo austero, irredutível — porque haveria ele de ouvir a opinião de um jovem anestesista com metade da sua idade?… Ele que já vira tanta coisa, tantos anos de guerra… e ali estava firme e hirto. No dia seguinte, chego ao hospital cheio de diplomacia e muito humildemente com as guidelines de “Traumatic Brain Injury”, e mostro-lhas. “Do you see, according to the international guidelines the corticosteroids are contraindicated!” A resposta dele não se fez esperar: “Not in Afghanistan! KO fácil. Embora estes momentos tenham sido difíceis de digerir, consegui pequenas conquistas, com impacto importante para os doentes: na gestão de antibióticos, na preparação pré-operatória… Pequenas/grandes vitórias, mas acima de tudo respeitava-o, pois era um homem trabalhador, e um médico dedicado aos doentes, pouco frequente naquelas bandas, pois vinha ao hospital operar a qualquer hora, se fosse preciso, e nunca o vi virar a cara a nenhuma luta que implicasse meter o doente na mesa operatória, e dar tudo para lhe salvar a vida. Era quase desprovido de exteriorização de sentimentos, mas pareceu-me um homem bom.

Nesse dia em que me fui embora, cruzei-me com ele e dei-lhe um abraço, um abraço forte. Ao que foi a única manifestação de humanidade que tivemos em três meses. Vieram-me as lágrimas aos olhos e naquele silêncio ficou um “eu sei que tu sabes, que sabes que eu sei!”. Travámos duras batalhas um contra o outro, e duríssimas batalhas juntos pelos doentes. E penso que ficou um enorme respeito e admiração recíprocos de quem ao seu estilo dá o seu melhor!

Assim é o afegão: duro, intenso, guerreiro, inquebrável, um carácter sem igual, mas sensível e fiel amigo do seu amigo.

O Afeganistão é um país maravilhoso, cheio de coisas maravilhosas e com um povo maravilhoso e estarão sempre no meu coração.

É importante que o mundo saiba!

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