Portuguesa vítima de violência doméstica no Reino Unido contactou polícia sete vezes antes de morrer

Uma jovem portuguesa residente no Reino Unido morreu em Abril de 2020, para todos os efeitos, de falência cardíaca. Mas as agressões sucessivas pelo companheiro e a ausência de respostas aos seus pedidos de ajuda levaram ao desfecho, que a mãe da vítima diz ter sido “o crime perfeito”. O agressor cumpriu uma pena de dez meses e está agora em liberdade.

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pp paulo pimenta

Uma portuguesa de 23 anos que foi encontrada morta em casa, no Reino Unido, em Abril de 2020, tinha contactado a polícia sete vezes nos 12 meses anteriores devido a agressões do seu companheiro, revelou uma investigação independente.

De acordo com a investigação do jornal New York Times (NYT), que teve acesso a um relatório sobre o caso conduzido por um gabinete independente para a conduta policial, nos meses que antecederam a morte, a mulher ligou para a polícia sete vezes, incluindo duas chamadas que fez a 8 de Abril, dia em que morreu.

O relatório indica várias falhas por parte da polícia britânica no caso. A primeira chamada aconteceu em Maio de 2019, quando estava grávida do segundo filho. Na ocasião, a vítima disse à polícia que o seu parceiro tinha ameaçado que a iria matar, que era violento e “excessivamente ciumento”.

No entanto, a mulher não quis apresentar queixa do companheiro, então com 30 anos. De acordo com o NYT, a portuguesa, que estava em Inglaterra desde 1999, queria ajuda, mas não quis invocar a lei. Segundo a mãe da vítima, esta amava o companheiro e esperava que ele mudasse.

A violência foi-se repetindo e, segundo a mãe e uma amiga da família, os desentendimentos do casal prendiam-se com o abuso de drogas por parte do companheiro.

A vítima voltou a chamar a polícia mais três vezes nos meses seguintes. Na quarta chamada, em Novembro de 2019, afirmou que o seu companheiro a empurrou e imobilizou, tendo a portuguesa retaliado em defesa. Um agente da polícia “deu conselhos a ambas as partes”, segundo o relatório.

A 29 de Dezembro, a vítima ligou novamente à polícia — que a considerou “histérica” —, queixando-se de que o companheiro a tinha atingido na cara e agredido de tal forma no dia de Natal que mal podia respirar e que, no dia seguinte, este tinha empurrado a sua cabeça contra uma parede.

Devido à falta de meios, os dois agentes destacados chegaram apenas quatro horas depois da chamada. No local, o responsável marcou o casal como tendo “problemas de comunicação” e disse não estar “preocupado”. Apesar da relutância da vítima em apresentar queixa, as autoridades poderiam ter procurado alternativas para assegurar o bem-estar da vítima.

O jornal norte-americano remete para um outro relatório de um gabinete de análise de queixas de violência doméstica, datado de 2014, no qual era dito que os agentes devem “construir o caso para as vítimas, e não esperar que as vítimas construam o caso para a polícia”.

A queixa e a saída em liberdade

A penúltima chamada da portuguesa para a polícia aconteceu na manhã de 8 de Abril de 2020. A vítima disse que o companheiro a tinha atirado para a cama e apertado o seu pescoço, deixando marcas. Antes de sair de casa, o suspeito voltou a ameaçar que a mataria.

Nesse dia, a vítima concordou em apresentar queixa, tendo dito à polícia que tinha “perdido a conta” à frequência com que o companheiro a tinha agredido.

Poucas horas depois, o homem foi detido, em lágrimas enquanto era levado pelas forças de segurança. No mesmo dia, acabou por ser libertado. Os agentes descreveram-no como “arrependido”, tendo um dito que este não aparentava ser uma “ameaça”.

Sob uma directiva que a polícia tinha recebido de que não poderia deter muitos suspeitos como forma de evitar a propagação de covid-19, o agressor foi libertado, tendo prometido que não iria visitar o apartamento da companheira ou entrar em contacto com esta. Mentiu.

Foi libertado às 18h04, sem supervisão policial, e, 20 minutos depois, contactou a vítima através da rede social Facebook, violando assim os termos da sua libertação. Questionou-a, tendo esta respondido que a tinha agredido novamente e que “apenas queria ter uma família feliz”.

Segundo dados do seu telemóvel, o suspeito estava novamente no apartamento da vítima pelas 20h10. Três horas depois, a vítima fez um último pedido de ajuda, dizendo que o companheiro a tinha agredido e marcado.

O agente da polícia que atendeu a chamada não verificou o endereço da vítima ou o seu nome, segundo as transcrições, o que significa que este não tinha conhecimento de outros pedidos de ajuda.

Apenas após desligar a chamada, o agente, que perguntou à vítima se esta precisava de uma ambulância — algo que rejeitou — entendeu a gravidade da situação, depois de se ter deparado com um aviso da polícia sobre a morada da vítima.

O “crime perfeito"

Pelas 01h00 de 9 de Abril, a polícia visitou a mãe da vítima para a informar de que a sua filha tinha morrido.

A portuguesa tinha 23 anos e sofria de uma condição cardíaca diagnosticada em 2015. Os exames realizados após a morte concluíram que as agressões poderão ter espoletado a falência cardíaca.

A mãe da vítima disse à polícia que este foi “o crime perfeito”, uma vez que o companheiro da vítima “sabia o que aconteceria se a perturbasse” e que esta poderia morrer.

Apesar da morte da portuguesa, o Ministério Público desistiu da acusação por homicídio involuntário, depois de um cardiologista contratado pelos advogados do suspeito ter argumentado que o problema cardíaco poderia ter sido resultado das agressões ou apenas de uma discussão verbal.

A vítima integrou assim uma estatística tenebrosa, passando a ser uma das 16 mulheres ou crianças que morreram em alegados homicídios domésticos durante o primeiro mês de confinamento no Reino Unido — o triplo do registado no mesmo período de 2019.

O suspeito, sentenciado a 10 meses de prisão por agressões graves, cumpriu pena e encontra-se em liberdade.

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