Há mar e mar

Podemos ser as pessoas mais infelizes do mundo que, dentro do mar, deixamos de sê-lo. Abate-se sobre nós um aparvalhamento. O frio da água com a mudança da matéria envolvente altera também o nosso estado.

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"Grande extensão de água salgada, diz o dicionário. O dicionário é pobre quando o define. Definir, na etimologia, é pôr um fim. E ao mar não se pode pôr um fim" Rui Gaudencio

Há mar e mar. O mar, para mim, sempre foi o mar das ondas, da costa Oeste e da costa Vicentina. Quem se habituou a mergulhar nestes mares sente algum orgulho em exibir que é capaz de suportar gelos antárcticos e de ser engolido no exacto instante em que uma onda se agiganta sobre a areia, mesmo antes de se fechar em espuma. Sentimos um certo desprezo pelos mares cálidos, pelas bandeiras inabalavelmente verdes, por aqueles mares que não puxam por nós, aqueles caldos algarvios cheios de gente a boiar. Sentimo-nos conspurcados ao mergulhar no mar quente e parado. Como se não merecêssemos aquele mergulho fácil. Tornamo-nos adeptos de uma espécie de meritocracia do mar e temos uma sobranceria condescendente em relação a mares previsíveis. Queremos o mar que nos pode surpreender, aquele que num dia mais eufórico se apodera da praia inteira sem misericórdia, arrastando havaianas e lancheiras.

Há mar e mar. A minha mãe sempre o abordou na óptica do utilizador, foi ela que me passou a importância do mergulho. Se estou na praia com ela e não vou ao mar, há um misto de desilusão e de incompreensão no seu olhar. Já o meu pai gosta mais do mar na óptica do observador, fica horas a olhá-lo do alto das falésias e o máximo que o vi molhar foi os pés, em passeios à beira-mar. Uma atitude contemplativa movida pelo encanto poético e pelo frio.

Há mar e mar. Podemos ser as pessoas mais infelizes do mundo que, dentro do mar, deixamos de sê-lo. Abate-se sobre nós um aparvoamento. O frio da água com a mudança da matéria envolvente altera também o nosso estado. Temos livre-trânsito para uma nova identidade temporária. Esbracejamos, incautos e felizes. Somos algas, boiamos e vemos reflexos moverem-se sobre aquele manto infinito. Voltamos a ser crianças, leves, de cabelo molhado e pernas irrequietas. No mar, vemos o carrancudo tornar-se brincalhão. Quando estamos lá dentro, queremos que os outros comunguem daquela experiência e chamamos todos para junto de nós: “Venham, venham, está óptima!” É imperativo dizer que a água está óptima para aliciar os indecisos à beira-mar plantados. Somos as “testemunhas de Jeová” do mergulho. Muitos regressam às toalhas secos e irredutíveis, não convencidos pelo nosso excitamento marítimo. Outros, aventuram-se num mergulho gélido do qual se arrependem no mesmo instante, mas, tarde de mais, já são um de nós. Continuamos o apregoamento quando chegamos, ensopados, junto aos que estorricam nas suas toalhas, ostentando toda a nossa frescura, salpicando gotas do cabelo e aterrando na toalha ao lado deles, para delegar a nossa epiderme aos cuidados evaporativos do sol. Às vezes, com este golpe gelado a atentar aos corpos suados dos que partilham connosco o areal, somos bem-sucedidos: eles levantam-se e partem, persuadidos, rumo ao mar.

Há mar e mar. Olhá-lo já foi sinónimo de despedida e já foi sinónimo da esperança de um regresso concretizado numa nau a surgir na linha do horizonte. Sempre que olhamos para o mar, há vestígios desse nosso passado que paira no inconsciente colectivo e desse domínio que desde pequenos nos transmitiram que tivemos sobre ele. Desde sempre ouvimos histórias acerca do poder do mar e da tentativa de controlá-lo. Moisés teve de separar o mar, Jesus de andar sobre ele, e a Bíblia diz que “não há nada demasiado difícil para Deus, nem o mar é capaz de impedi-Lo”. Segundo a lenda, o imperador Calígula mandou cem soldados esfaquear o mar, para mostrar a sua soberania. Regressaram com baús cheios de conchas, para provar que tinham conseguido, como se as conchas fossem os ossos do mar. Mas ninguém manda no mar, só a lua. A lua puxa-o, com o seu magnetismo, numa comunicação secreta e milenar, na qual ninguém interfere.

Há mar e mar e muitas formas de vê-lo. Para os surfistas, importa se há ondas; para os pescadores, se há peixes; para os marinheiros, se há vento; para os faroleiros, se há barcos; para as empresas petrolíferas, se há petróleo; para os poetas, se há sereias.

Há mar e mar. Nem sempre nos lembramos de que, debaixo daquele pano de azul e espuma, está um universo. A sua camada, que parece espessa, é transponível ao primeiro mergulho e esconde quilómetros e quilómetros de um mundo imenso. Nunca me hei-de esquecer da sensação que tive na primeira vez que fiz mergulho de botija. Aí, eu percebi: o mar é um portal. Lá em baixo há árvores, crateras, milhões de seres vivos, túneis e perigos. Todos os deuses gregos moram no Olimpo, excepto Poseidon, que escolheu o mar. Não posso julgá-lo. Quem quer o céu se pode ter o mar?

Aqui, neste cantinho do mundo, sob a configuração geográfica a que se deu o nome de península, pendemos ora para terra, ora para o mar. Não somos uma ilha, rendidos ao domínio imperativo do oceano, mas também não somos totalmente terrestres. Balançamos, tentando conciliar este equilíbrio, procurando a nossa identidade entre a terra e o mar. Podemos resistir-lhe ao longo de um Inverno, fechados, com lareiras e repastos. Satisfazemo-nos com montanhas e pinhais e vamos saciando a sede com o vinho, mas, se a ausência do mar se faz demorada, chega uma altura em que lá o sentimos a chamar por nós. Não adianta, não somos do deserto, nem da selva, nem das pradarias. Precisamos da nossa dose marítima, nem que seja de ir ver o mar ao longe, através da janela do carro.

Num hotel, procuramos a vista-mar, dizer que uma comida sabe a mar é um elogio e passamos meses a ansiar aquele cheiro a mar que tempera o espírito. O mar sempre ajudou os apaixonados. Mesmo os menos imaginativos têm meio caminho andado, se o mar estiver ao barulho.

Há mar e mar. Grande extensão de água salgada, diz o dicionário. O dicionário é pobre quando o define. Definir, na etimologia, é pôr um fim. E ao mar não se pode pôr um fim.

Há mar e mar. Gosto de ligar à amiga que já está na praia e perguntar: “Como está ele hoje?” Ele é o nosso amigo mais temperamental. O nosso vizinho eterno. A testemunha de tantos inícios e fins de namoros. É pai e é mãe. Não deve ser por acaso que, em francês, mar e mãe se diga da mesma maneira e que “mar” seja feminino. É colo que embala. É o que purifica, baptiza, lava, leva, renova e expande. Oxalá fôssemos mais do que seus visitantes, inquilinos de escritura assinada a viver sempre no alto das ondas, talvez víssemos a terra com igual encanto. É impossível não sentirmos que é o nosso maior aliado, quando bate em retirada num fim de tarde e se desembrulha todo, oferecendo-nos um palco de areia, só para podermos dar o nosso passeio.

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